Prólogo – a pandemia sequestrou o futuro, mantido em cativeiro em algum terreno baldio, à espera da libertadora vacina.
Há dois meses não sento na padaria, peço uma média com pão na chapa e navego na página “Niterói Antigo”, no Facebook, que nessa quarentena anda muito movimentada.
Sempre achei que Niterói fosse fêmea, Niterói antiga, mas o etimólogo que nos habita não está querendo papo. Se Niterói for macho escrevi errado a vida inteira e, a essas alturas, não dá mais para corrigir. Clique aqui para acessar a página do Niterói Antigo.
Há fotos, algumas raras, dos anos 1970, 60, 50, a escadaria não tem limite. É uma verdadeira viagem, especialmente os lugares que nós não temos noção que existiram.
Para os saudosistas “seniors” as fotos são verdadeiras picanhas maturadas de carne angus, devoradas devagar, olhos lacrimosos. Se bem que, aqui entre nós, quem não está sentido saudade de Niterói, ou de alguéns, ou de si mesmo nesse isolamento imposto?
Quem precisa sair de casa a noite encontra uma cidade desolada, cheia de perguntas sem respostas no meio dessa pandemia. Além do risco de vida, o ser humano é confrontado pela falta de perspectivas existenciais, profissionais porque a pandemia sequestrou o futuro, mantido em cativeiro em algum terreno baldio a espera da libertadora vacina.
Niterói Antigo. Pesquei na gaveta uma história que pode espantar esse mofo atordoado que ronda a cidade. Um encontro que tive com um conhecido que é saudosista, mas não é chato.
Naquele momento ele andava com muita saudade do que chamou de “velha e boa” barca Rio-Niterói “mais romântica, varrida por uma brisa marinha, alguns boêmios, a presença do profeta Gentileza, blá blá blá blá.”
Eu ia dizer que a única coisa boa da barca era a banca de um camelô especializado em relógios falsificados, que ficava num canto lá na Praça 15. Orgulhoso, o camelô dizia “não são paraguaios, a fábrica fica na subida para Petrópolis”.
Não comentei por educação e para não prolongar a conversa, mas não tenho saudade nenhuma da barca Rio-Niterói, de hoje, de ontem, dos anos 1970 (quando atravessava a Baía de Guanabara diariamente) que era suja, quente, lenta. A travessia levava meia hora e elas pareciam bonitinhas e “vintage” só para os turistas ou por quem não era obrigado a usar.
Em algum lugar do passado, havia um marinheiro que era grosso, estúpido, amargo, mal humorado, boçal, mas eficiente. A partir de meia noite quando o sono engolia muitos passageiros (sem falar dos bêbados), o marinheiro punk batia com o jornal nos encostos das cadeiras de madeira e gritava “chegou, cambada! Quem não levantar volta para o Rio”.
Um conhecido que adorava andar a pé pelo Rio (por isso ganhou o apelido de Gandhi) voltava de um forró no Méier as 2 e meia da madrugada, de sexta para sábado. Eu retornava da semifinal de um festival de música na Tijuca, onde fui jurado.
Na estação da Praça 15, aguardando a barca das três horas, Gandhi falou comigo, eu respondi “rapá, há quanto tempo, e tal”, mas ambos, ele e eu, estávamos baleados de sono. Suspeito que Gandhi estava levemente biritado, mas não pude confirmar. As barcas de três, três e meia, quatro da manhã eram chamadas de “balsa dos desesperados”, o que fazia sentido. Propus a Gandhi que sentássemos perto um do outro.
Chumbados de sono combinamos que ele me acordasse quando chegasse a estação de Niterói. Ele foi franco: “Também estou morto de sono e assim que sentar na barca vou apagar”. Fechamos que cada um dormiria 15 minutos, começando por mim. Ele topou.
Quando a barca deu o terceiro apito, anunciando a partida, encostei as pernas na cadeira da frente, cruzei os braços, olhei em volta (muitos bêbados), me aninhei e apaguei. Tudo muito rápido. Só que Gandhi também dormiu e o marinheiro punk, aquele que acordava todo mundo batendo com o jornal, não estava trabalhando.
Acordei com a embarcação encostando na estação, dando trancos que eram tradicionais. Olhei para o lado, Gandhi roncava e babava. Acordei o meu conhecido, saímos da barca e notamos logo que…tínhamos voltado para o Rio.
O marinheiro punk bem que poderia ter trabalhado naquela madrugada, pensei enquanto saía na Praça 15 em direção a uma carrocinha de milho verde que iria estraçalhar antes de embarcar de novo tentando voltar para Niterói.
– Parece “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, comentei com Gandhi que sequer respondeu.
Provavelmente não sabia do que se tratava, mas quer saber?. E ele tinha razão. Tínhamos que voltar para Niterói, uma obsessão que tomou conta também dos personagens do filme de Buñuel, pessoas que se veem presas na sala de jantar de uma mansão após uma refeição formal. Não havia nada físico que os impedisse de sair, porém algo os fez reféns de portas e grades imaginárias.
Cheguei em casa já amanhecendo, tomei um banho, bebi um café e fui para a cama. Liguei o rádio baixinho, sintonizado na Eldo Pop FM onde a banda alemã Nektar tocava “A Tab in the Ocean”. Com certeza não conseguiria dormir. Quem gosta de música boa e de cama, não dorme com uma dessas. Ou então é blefe. Não gosta nem de música, nem de cama, mas isso é outro assunto, para outra hora. Foi o que pensei, desligando o rádio.
Bar do lido em Icaraí
Esqueceram do angu do Gomes na Pça XV
A barcas funcionavam, com certa precariedade, à uma tarifa mais justa. Hoje, a qualidade do serviço melhorou, inegavelmente, mas a tarifa se tornou injusta.
Sempre que chovia, faltava luz. O serviço de distribuição de energia melhorou sensivelmente, mas acho que estamos pagando mais pela infraestrutura, seja direta (pela conta) ou indiretamente, quando os nossos impostos financiam a ampliação da rede.
Havia mais falta d’água, mesmo nos bairros mais abastados. Para quem mora nos bairros periféricos, a situação não é tão diferente hoje. Novamente, tenho convicção que estamos pagando mais pelo serviço, pelos mesmos critérios do mencionado acima.
O que falar da dificuldade para se ter uma linha telefônica e do lixo que era a tecnologia da antes? Linhas cruzadas, dificuldade de completar uma ligação, telefones “mudos”, etc, etc, que enraiveciam qualquer sujeito minimamente são. Hoje, o serviço se dinamizou, mas novamente, estamos pagando um preço alto para isso.
Ir à uma agência da Caixa ou do Banco do Brasil era um suplício. Filas quilométricas e funcionários grosseiros. Grandes bancos privados também não eram lá essa maravilha, pois o sistema bancário era precário, pouco informatizado, e ir ao banco era um exercício de paciência. Hoje, convenhamos, mesmo os bancos públicos estão mais informatizados e eficientes, ainda que haja espaço para melhoria.
Alguém se lembra de como era uma via crucis tirar documentos? O velho e nefando Instituto Félix Pacheco, onde se perdia 5 ou 6 horas do dia só para dar entrada no documento de identidade, para ter que voltar depois e perder mais horas nas filas, sendo tratado como gado. E o DETRAN? Cruzes, era um lixo…Hoje, convenhamos, a atendimento e o serviço melhoraram substancialmente. Ainda há problemas, mas comparando com os anos 90 para trás…
Quem se deslocava de ônibus se lembra bem: pontos lotados, confusão de vários ônibus parados ao mesmo tempo, motoristas sádicos passando por fora sem parar nos pontos, ou parando em qualquer lugar. Subir nos ônibus era tarefa para intrépidos. O sadismo dos motoristas continuava uma vez o passageiro dentro do ônibus: solavancos, freadas bruscas, curvas em alta velocidade (eu sempre achava que o ônibus ia tombar), subir e descer do ônibus com o veículo ainda em movimento, pois o motorista não queria fazer a parada total…enfim, era para quem tinha estômago, ou não tinha opção. Convenhamos, andar de ônibus hoje em dia, pelo menos em Niterói, e em diversas cidades importantes por aí, não é uma experiência tão negativa assim. O problema, mais uma vez, é o valor da tarifa.
Como se vê, temos uma tendência a romantizar o passado. Se fizermos uma análise cuidadosa, veremos que a vida prática era tão ou mais difícil que hoje. O que realmente faz falta é a JUVENTUDE. É essa que queríamos trazer de volta. Não me parece coincidência que nostalgia é coisa de quem já passou dos 40. Não conheço nenhum adolescente ou jovem nostálgico. Deveríamos saber envelhecer melhor. Por que será que não sabemos?
Em tempo: eu mesmo sou um nostálgico em estágio terminal.
Muito boa reflexão, prezado Marcel. Pontuada por dados de realidade que podem ser confirmados em núcleos de pesquisa e documentação; ou em testemunho daqueles que já passaram dos 60 anos de idade e têm hoje boa memória. 👏👏👏👏