Esta semana, um leitor da coluna do Ancelmo Gois, no Globo, mandou uma foto soltando cafifa na varanda de seu apartamento. Uma maneira que ele encontrou de passar o tempo na quarentena.
Cafifa é como é chamada a pipa, em alguns lugares, em especial Niterói. A definição está em vários livros e também na Wikipedia:
“Cafifa – Uma pipa, papagaio, quadrado, piposa, pandorga, arraia ou pepetade é um brinquedo que voa baseado na oposição entre a força do vento e a da corda segurada pelo operador.
É composta de papel que tem a função de asa, sustentando a armação. Conforme o modelo pode contar com uma rabiola, um adereço preso na parte inferior para proporcionar estabilidade.”
Soltar cafifa é o que há de mais lúdico. Em muitos lugares chamam de “empinar papagaio”, “empinar pipa”, mas prefiro chamar de “soltar cafifa” esse mágico momento de libertação da mente, devaneios, relaxamento.
Na adolescência, a Praia de Icaraí era o melhor local aqui na cidade, principalmente quando o vento soprava forte do mar. Havia pipas que exigiam mais perícia e eram boas para rajadas mais fortes como “morcego” e “estilão”, essa com uma longa cauda. A que subia mais fácil era “arraia”, no entanto era mais frágil, rasgava fácil no ar. Havia quem gostasse do “peão” que para mim era muito burocrático. A linha 10 era a mais usada, mas em ventos fortes muitos optavam pela Rococó zero zero.
Claro que as cafifas criaram algumas expressões. “Dar linha”, que significava descarregar todo o carretel, acabou significando “estou indo embora, dando linha”, ou, mais comum, terminando um casamento, ou namoro, “dei linha na cafifa”. Já palavra “avoado”, quando a cafifa é cortada por outra e fica a mercê do vento até cair, significa estar solteiro (a), livre, avoado.
A Praia de Icaraí continua sendo um bom local para a arte de soltar cafifa, mas o voo é limitado. Impossível passar por cima dos prédios que formam aquela monumental muralha de ponta a ponta, a fábrica de sombras que assola o bairro.
São Francisco e Charitas seriam ótimos locais mas o vento do mar, o melhor, é barrado pela Ponta do Morcego em Jurujuba e chega meio fraco e enviesado.
Hoje o melhor local é o entorno do Teatro Popular Oscar Niemeyer. Tempestade perfeita: vento nota mil, visual do mar idem, dá para entrar de bicicleta, não há fios de energia elétrica, etc.
A cafifa se afastou da Praia de Icaraí (aliás, de toda Niterói) nos anos 1970, na garupa da minha adolescência, por causa da maldita linha chilena. Hordas de pseudo cafifeiros de outros lugares invadiram a nossa praia e trouxeram o que orgulhosamente chamavam de “sucessora do cerol”.
O cerol já é uma insanidade, mas a linha chinela é um milhão de vezes pior e começou a cortar gente em Icaraí. Parei de soltar cafifa, meus amigos também, perdemos a praia etc, etc, etc.
O criminoso cerol é a mistura de vidro moído com cola de madeira (ou de sapateiro) que transforma a linha numa foice invisível. Desde os anos 70 a situação piorou com a chegada dessa linha chilena. É feita industrialmente e seu poder de corte é fulminante por causa da presença de pó de quartzo e óxido de alumínio.
A linha indonésia e a linha de porcelana podem ser dez vezes mais perigosas e mais cortantes do que a chilena. Essas linhas que matam, principalmente, motociclistas, podem ser encontradas em toda a região metropolitana e em vários sites a internet.
Usar é crime, com pena de dois a cinco de prisão e multa que pode chegar a R$ 100 mil. A prática ilegal pode ser denunciada através do Disque-Denúncia, pelo telefone 2253-1177.
A Associação Brasileira de Motociclistas (Abram) informou que, no Brasil, são mais de 100 acidentes por ano, sendo que 50% causam ferimentos graves, e 25% fatais.
Em Niterói e cidades próximas há muitos festivais de cafifa (cerol, linha chilena etc são proibidos) e um dia quero participar de um deles. Minha ideia é esvaziar dois carretéis emendados de rococó zero zero em um morcego amarelo, até perder de vista, como os sonhos, os planos, a esperança, os poemas, tudo o que vale a pena ser contemplado infinitamente até o infinito findar. Sem metáforas.
As cafifas nasceram na China antiga, por volta do ano 1.200 A.C. Foram utilizadas como dispositivos de sinalização militar; os movimentos e as cores eram mensagens transmitidas à distância entre destacamentos militares.
São muito populares no Afeganistão apesar da perseguição do Talibã, movimento fundamentalista islâmico nacionalista que se difundiu no Paquistão, oficialmente, considerado organização terrorista pela Rússia, União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Emirados Árabes Unidos e Cazaquistão. Governou ¾ do país de 1996 a 2001.
O livro “O Caçador de Pipas”, do escritor e médico afegão de Khaled Hosseini (desde os 11 anos vive nos Estados Unidos), publicado em mais de 70 países e com mais de dois milhões de exemplares vendidos no Brasil, conta a história de dois garotos que se tornaram amigos e frequentaram campeonatos de cafifas nos anos 1970. O livro virou filme que pode ser visto na internet.
Nesses dias de aulas suspensas, o molecada da Região Oceânica tem soltado muita cafifa por lá. Quase toda tarde pode-se ver meninos no terreno baldio entre o Itaipu MuiltiCenter e o hospital da Unimed – aliás, que terreno enorme é aquele? Podia ser uma ótima área de lazer para o pessoal da região – e, pelo menos para mim, funciona como um leve sopro de contentamento nesses tempos tão sombrios. É interessante como os meninos se divertem alheios a tudo, só a pipa no ar interessa.
Valeu Luiz Antonio, parabéns por mais uma reportagem que me fez reviver os anos 70 , quando eu morava em Niterói.
Abraços do amigo Louis Reinaldo-Curitiba-Parana.