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Roberto Carlos e a lenda de Madú Gulosa, em Niterói

Escrito por Luiz Antonio Mello às 08:04 do dia 17 de novembro de 2020
Sobre: No supermercado
  • No supermercado
17nov

No supermercadoA música do Roberto Carlos tocava no supermercado em Icaraí, quarta-feira, onde as pessoas, principalmente idosas e idosos, não escondiam a indignação e a angústia com o aumento dos preços. Subiram o preço de tudo, na cara dura, na ganância.

“Como é grande o meu amor por você” é uma das canções do Roberto Carlos que me emocionam e me deslocam até 1967 quando foi lançada na trilha do filme “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Não dá para esquecer 1967, Festival Internacional da Canção, chegada da Tropicália, nascimento dos Mutantes, desembarque de uma bomba nuclear chamada “Revolver”, álbum dos Beatles que mudou o mundo.

A rádio que ouvíamos, todos com 10, 11 anos, em grupo, era a Mundial AM, oito meia zero, com Big Boy, Pedrão Nitroglicerina e tudo mais. Coincidentemente a Mundial tocava “Como é grande o meu amor por você” quando vimos uma fila de camburões passar pela rua. O que aconteceu? Prenderam os donos e os gerentes de três mercearias e mercados que estavam abusando do aumento de preços. Lembro bem das mulheres na rua, “é isso mesmo, cadeia pra esses safados”, porque, afinal, vivíamos num regime militar.

No supermercado de Icaraí, Roberto Carlos continuou cantando. “Eu cheguei em frente ao portão/Meu cachorro me sorriu latindo/Minhas malas coloquei no chão/Eu voltei”. Impossível não lembrar de Madú Gulosa, alguns anos depois, uma espécie de namorada comunitária, condomínio afetivo que dividíamos e que, fã visceral de Roberto Carlos, numa manhã de carnaval foi para o Rio e pegou um ônibus para Cachoeiro do Itapemirim, na esperança de ver e, quem sabe, agarrar e escalavrar o rei.

Enciumados, nós 15 tentávamos convencê-la de que seria perda de tempo, que Roberto Carlos morava na Urca, fechado em casa, raramente ia a Cachoeiro. Chegamos a ler um pedaço da letra: “Eu passo a vida recordando/De tudo quanto aí deixei/Cachoeiro, Cachoeiro/Vim pro rio de janeiro/P’ra voltar e não voltei! (…) Meu pequeno Cachoeiro/Vivo só pensando em ti/Ai que saudade dessas terras/Entre as serras/Doce terra onde eu nascí!”

Não adiantou. Madú foi e destruiu o nosso carnaval. Ciúme coletivo, daqueles de encher a cara de Fogo Paulista no coreto do Campo de São Bento que na época havia sido transformado em viveiro de pombas rolas (sem duplo sentido), o elo perdido entre o pombo e a rolinha. O nosso ciúme não era de Roberto Carlos, mas do fato da nossa Madú procurar, procurar, procurar o rei lá em Cachoeiro, não encontrar e, desiludida, acabar nos braços de um qualquer parecido com dele.

À noite? Tentamos penetrar no baile do Canto do Rio, o melhor carnaval da cidade, sendo menores de idade. Era quase impossível, mas havia exceções como Rubens Saiote. Apesar dos 15 anos, tinha um metro e oitenta e se fantasiou de viking, com chifres, barba postiça e um inexplicável saiote escocês (daí o apelido), fumando Continental sem filtro com Melhoral misturado. Ele conseguiu entrar na meca, no epicentro da luxúria, o carnaval do Cantusca.

Madú voltou antes da quarta-feira de cinzas, muda como um hidrante. Abatida, pálida, olheiras, cabisbaixa. Perguntaram o que tinha acontecido e ela arremessou o dardo: “aquele que me perguntar o que houve nunca mais olharei na cara”. E foi para casa onde permaneceu dias, dias, dias. Desesperados, nós 15 nos perguntávamos o que poderia ter acontecido de tão grave com a nossa Ternurinha, mas ninguém soube, até hoje, que mundo desabou sobre Madú Gulosa transformada em zumbi.

Tentando saber se umas bananas eram prata, d´água ou da terra no supermercado quarta-feira, uma senhora me deu razão. “Deveriam por uma etiqueta. As bananas hoje em dia são tão drogadas que prata é do tamanho da d’água que é do tamanho da terra”. Comentei “pois é” e uma outra senhora complementou. “Pois é, LAM, veja você…”. Pensei se tratar de uma leitora daqui, mas na sequência ela se apresentou: “não vai lembrar de mim. Sou a Madú”. Devo ter ficado meio vermelho porque ela engatou “rsrsrsr, sim, a Madú Gulosa, hoje uma avó sessentona”. Claro que, no ato disparei “Madú, por favor mate uma curiosidade de 50 anos: o que aconteceu com você em Cachoeiro do Itapimirim?” Ela soltou uma gargalhada e já saindo respondeu “esse mistério vai permanecer guardado”.

A rádio do supermercado baixou o nível e passou a tocar coliformes fecais disfarçados de acordes musicais, me abstraí e fui para o chamado “curral de Joseph Guillotin”, inventor da guilhotina. No caixa a lâmina desce, implacável, no pescoço dos consumidores dando apenas duas opções: crédito ou débito? Foi quando uma outra voz feminina, já na calçada, meio chorosa, clamou “como é bom te ver… achei que você tinha morrido”. “Que coisa desagradável, hein?”, respondi atônito. “Mas não foi você, foi o outro Lan, com N, desenhista”, completou a leitora.

Sim, perdemos o Lan, Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini, o mais carioca dos italianos. Um artista que soube misturar a beleza das montanhas do Rio com a beleza e sensualidade das curvas das mulheres brasileiras, especialmente as mulatas. Conheci o Lan rapidamente no Pasquim, um cara apaixonado pelo Rio. Tão apaixonado que casou com uma passista da Portela.

Wikipedia ensina que a sua íntima relação com essas mulheres tem início em São Paulo. Lá a família Vaselli contratou a babá Zezé para cuidar e amamentar o pequeno italiano. Tempos depois, o caricaturista confirmaria a devoção ao casar com a igualmente mulata Olívia Marinho, passista de Escola de Samba e integrante do trio Irmãs Marinho.

Caricaturadas com sinuosas curvas, as mulatas de Lan exibem a leveza, a graça e a exuberância das mulheres cariocas. Por vezes, os desenhos têm as formas do corpo feminino misturadas às dos morros da cidade. Grande parte da obra de Lan é destinada a elas, a mais conhecida temática do caricaturista.

Em 1972, Lan recebeu o título de Cidadão Honorário da cidade do Rio de Janeiro pela Câmara Municipal. Foi condecorado com a Medalha Pedro Ernesto, e o título de Carioca Honorário concedido pelo jornal O Globo e o título de Cidadão Honorário de Petrópolis. Aos sábados publicou no Globo as suas caricaturas, até o último dia.

Morreu aos Lan morreu aos 95 anos, em Petrópolis.

Ao Lan, a reverência e homenagem do LAM. Descanse em paz.

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Luiz Antonio Mello
Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.
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