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O marinheiro punk da barca Rio-Niterói

Escrito por Luiz Antonio Mello às 18:45 do dia 23 de dezembro de 2016
Sobre: Vai-e-vem na baía
23dez

Encontrei um conhecibarcario-niteroido que é saudosista, mas não é chato nem burro. Raridade. No momento ele anda com saudade da barca Rio-Niterói de antigamente, segundo ele, mais romântica, varrida por uma brisa marinha, alguns boêmios e vadios dormitando nas escadas, a presença do profeta Gentileza, blá blá blá blá. Eu estava num camelô contemplando relógios falsificados, chocado com o baixíssimo nível das “réplicas” atuais.

Não comentei com ele para não prolongar a conversa, mas não tenho saudade de quase nada, inclusive da barca Rio-Niterói dos anos 1970 (eu atravessava a Baía de Guanabara diariamente) que era suja, quente, lenta. A travessia levava quase meia hora e elas pareciam bonitinhas e “vintage” só para os turistas ou por quem não era obrigado a usar.

No entanto, duas vantagens inegáveis que os atuais catamarãs, muito quentes (claro, os que não tem ar condicionado) e caros, porém limpos e vendedores de enciclopédias não tem: belas e gostosas mulheres em profusão e uma varandinha que ficava na popa onde eventualmente namorávamos durante a travessia, usando a bandeira do Brasil que tremulava num pequeno mastro como toalha para higiene íntima.

Havia um marinheiro (a barca era do governo federal e funcionava muito bem) na madrugada que era grosso, estúpido, amargo, mal humorado, boçal, mas eficiente. A partir de meia noite, quando o sono engolia muitos passageiros (sem falar dos bêbados), o marinheiro punk batia com o jornal nos encostos das cadeiras de madeira e gritava “a barca chegou, cambada! Quem não levantar volta para o Rio”.

Um primo meu garante que o marinheiro punk foi transferido para a madrugada depois que, num dia de semana, por volta das três da tarde, os passageiros sentiram que algo errado acontecia. Foi quando o nosso personagem foi para a frente das fileiras de cadeiras do segundo andar e gritou “o leme da barca quebrou, por isso ela está rodando”, e saiu. Muita gente passou mal e os passageiros tiveram que ser transferidos para outra embarcação em pleno mar.

Alguém denunciou o marinheiro como “fomentador de pânico” e ele foi transferido para a madrugada, barca de passageiros, digamos, profissionais. Ali, o marinheiro podia gritar até que estava afundando e ninguém se importaria.

Um conhecido que adorava andar a pé pelo Rio (por isso ganhou o apelido de Gandhi) voltava de um forró no Méier as três e meia da madrugada, de sexta para sábado. Eu retornava da semifinal do concurso Miss Shortinho. As barcas funcionavam 24 horas. Hoje param de circular as 23h30m, obrigando todo mundo a pegar ônibus.

Na estação da Praça 15, aguardando a barca das três horas, Gandhi falou comigo, eu respondi “rapá, há quanto tempo, e tal”, mas ambos, ele e eu, estávamos chamuscados pelo sono. Suspeito que Gandhi estava levemente biritado, mas não pude confirmar. As barcas de três, três e meia, e quatro da manhã eram chamadas de “balsa dos desesperados”, o que fazia sentido.

Propus a Gandhi que sentássemos perto um do outro. Chumbado de sono pedi que ele me acordasse quando chegasse a estação de Niterói. Ele foi franco e me disse, voz levemente pastosa, que “também estou morto de sono e assim que sentar na barca vou apagar”. Combinamos, então, que cada um dormiria 15 minutos, começando por mim. Ele topou.

Quando a barca deu o terceiro apito anunciando a partida, encostei as pernas na cadeira da frente, cruzei os braços, olhei em volta (muitos bêbados), me aninhei e apaguei. Tudo muito rápido. Só que Gandhi também dormiu e o marinheiro punk, aquele que acordava todo mundo batendo com o jornal, não estava trabalhando; todos os outros marinheiros sumiram, como era de praxe.

Acordei com a embarcação encostando na estação, dando uns trancos que eram tradicionais. Olhei para o lado, Gandhi roncava. Acordei o meu conhecido e saímos da barca e notamos logo que…tínhamos voltado para o Rio.

O marinheiro punk bem que poderia ter trabalhado naquela madrugada, pensei enquanto saia de novo na Praça 15 em direção a uma carrocinha de milho verde que iria estraçalhar antes de embarcar novamente tentando voltar para Niterói.

– Parece “O Anjo Exterminador”, de Luis Buñuel, comentei com Gandhi que sequer respondeu.

Provavelmente não sabia do que se tratava, mas ele tinha razão: tínhamos que voltar para Niterói, uma obsessão que tomou conta também dos personagens do filme de Buñuel, pessoas ricas que se veem presas numa das salas de uma mansão após um jantar formal. Não há nada físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e grades imaginárias.

Para evitar problemas, duas decisões: a) subi para o segundo andar da barca e fui para a varandinha da proa, de cara para o vento da baía. Impossível dormir em pé com o vento na cara; b) me distanciei de Gandhi porque cismei ele estava mesmo bebum e que o seu estado emocional contaminava.

Cheguei em casa, tomei um banho, bebi um café e fui para a cama. Liguei o rádio baixinho, sintonizado na Eldo Pop FM de Big Boy e tocava a banda alemã Nektar tocando “A Tab in the Ocean”. Com certeza não conseguiria dormir. Quem gosta de música boa e de cama, não dorme com uma dessas. Ou então é blefe. Não gosta nem de música, nem de cama, mas isso é outro assunto, para outra hora. Foi o que pensei, desligando o rádio.

Off.

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Luiz Antonio Mello
Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.
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