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O Ford Corcel voador do meu primo Danton

Escrito por Luiz Antonio Mello às 08:37 do dia 16 de janeiro de 2021
Sobre: Quatro rodas
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16jan

dantonAssim que li na internet que a Ford vai se mandar do Brasil, lembrei de meu saudoso primo Danton Queiroz de Farias Mello, figura que era muito querida aqui em Niterói. Ele mudou para o Rio nos anos 90. Meu primo morreu há alguns anos de anorexia.

Proporcionalmente, Niterói foi uma das cidades que mais consumiram veículos da marca Ford no Brasil, principalmente o Galaxie, Landau, Corcel e Del Rey. Se a Ford não tivesse feito tantas lambanças a marca ainda estaria se destacando nas ruas da cidade.

Com poucos modelos, carros defasados, o início do fundo do poço da Ford por aqui foi a criação da famigerada Autolatina, conhecida como “beijo da morte”, uma fusão com a Volkswagen (envolvendo a Argentina) entre 1987 e 1996. Foi um Frankenstein, piada e deboche no mundo todo. Os carros lançados pela Autolatina tinham um ponto em comum: eram péssimos. Danton era “fordista” e viveu os bons momentos da montadora. Cornélio, também primo, era muito próximo dele e conta histórias muito engraçadas da dupla aqui na cidade.

Éramos apaixonados por automóveis, chegamos a ir de ônibus a alguns salões em São Paulo e também a corridas de amadores no autódromo de Jacarepaguá. Volta e meia descíamos a serra de Teresópolis de maneira impublicável e num belo dia, nevoeiro forte, parados no Soberbo, concluímos que era “muito melhor correr atrás das garotas do que ao lado de abismos”, filosofamos.

A meta de Danton era brilhar na Praia de Icaraí que nos anos 70, Icaraí era o epicentro da paquera, das turmas, das bebedeiras, das esquinas lotadas, do zigue zague das meninas chupando sorvete. Depois das 10 da noite a fauna, a flora e a geografia afetiva mudavam de bairro. Íamos para o Rink e arredores em busca de outlets, no centro, onde no lugar das meninas entravam em cena as mulheres liberadas, sensíveis a dar uma volta de carro com parada na rua da Amargura (uma subida de terra na Boa Viagem, em frente ao MAC), ou quem sabe uma ida a um tal motel das estrelas que havia no alto de um morro em Pendotiba onde estavam fazendo um loteamento.

Danton ganhou um Ford Corcel branco zero KM. Início da década de 70. Foi prêmio por algo que ele conquistou, não me lembro o que, mas deve ter sido relacionado a estudos. O Ford Corcel na verdade nasceu como Renault. Em 1967 a Ford do Brasil comprou a Willys Overland (que produzia o Jeep, que foi lamentavelmente foi degolado pela miopia da Ford) que tinha licença para fabricar o Renault Gordini, apelidado de “Leite Glória” porque desmanchava sem bater, slogan da marca de leite em pó que era instantâneo.

Apesar de Ford, o Corcel tinha motor Renault 1.3 com 68 cavalos. Lançado em 1968, foi um sucesso. Em todas as rádios explodia a canção “Mustang Cor de Sangue” (Mustang também é da Ford), de Marcos e Paulo Sergio Valle, na voz de Wilson Simonal: “A questão social, industrial/ Não permite e não quer que eu ande à pé/ Na vitrine um Mustang cor de sangue/ (…) A questão social, industrial/ Não permite que eu seja fiel/ Na vitrine um Corcel cor de mel/Meu Corcel, cor de mel/ Meu Corcel…”. Ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_ZKq8EcWCQQ

Danton modificou totalmente o Corcel. Colocou rodas e pneus largos que saiam para fora dos paralamas; instalou o polêmico bujão, uma válvula que permitia anular os efeitos do silencioso, ou seja, desenroscando o bujão o barulho do motor ficava liberados; faróis de milha amarelos. Mas a mexida mais importante foi no motor. Danton mudou o carburador e vários outros componentes numa oficina especializada na preparação de carros de corrida em São Conrado e o Corcel virou um míssil.

O carro era um frisson na Praia de Icaraí, virou sonho de consumo da garotada. No “horário nobre”, sábado entre quatro da tarde e sete da noite, Danton dava uma subidinha no meio fio e o seu Corcel andava em duas rodas, indo de lado da praça do cinema Icaraí até perto da Ary Parreiras. Gozador, amarrava um barbante no para choque dianteiro do carro, puxava o afogador e saía andando puxando o Corcel como se fosse um carrinho de brinquedo. As meninas adoravam e Danton virou pop star como um beatle, até porque muitos dos que tentavam imitá-lo tentando andar em duas rodas tombavam, pagavam mico. Como era gente boa o meu primo Danton.

Meu pai (irmão do pai de Danton) tinha comprado um Corcel, por sinal, cor de mel. Chegou em casa, eu e meu irmão animados perguntamos “e aí, pegou o Corcel na concessionária?”. “Peguei”. “Gostou?”. “Geleia, porcaria, Gordini de casaca”, meu pai resumiu. De fato, quando dirigi ouvi um “clac” na suspensão quando o carro arrancava que apesar de ter ido parar na concessionária mais de 10 vezes o problema não foi resolvido. A lanterna traseira virou aquário com a água da chuva, a suspensão frágil fazia barulho até que, meu pai trocou pelo recém lançado Opala dourado metálico (espetacular) que ganhou o apelido de “peão bêbado” na descida para a Reta, em Teresópolis. Perguntem a meu irmão Fernando Cesar, por que (rsrsrsrs).

A saída da Ford do Brasil é consequência de seguidas lambanças da montadora e desse ambiente econômico perverso, caro, inviável. Pior, ninguém faz nada. Mas, é claro que as lembranças flutuam e ecoam nas ondas do tempo que mandam um forte abraço para Suzana e Paulo Eduardo, também meus primos, irmãos do Danton.

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Luiz Antonio Mello
Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.
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