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Niterói e os tempos de capital fluminense

Escrito por Luiz Antonio Mello às 15:07 do dia 7 de abril de 2017
Sobre: Antes da ponte
  • ponte
07abr

No dia 15 de março de 1975, o antigo Estado do Rio se casou a força com a extinta Guanabara. Ordem da ditadura. Dois estados que eram estáveis, ricos, cada um com seus hábitos, sua cultura, viraram um mendigo, financeira, moral, cultural, social e politicamente.

O governador do velho Estado do Rio, que tinha Niterói como capital, vivia e trabalhava no Palácio do Ingá, aquele belo paço na Rua Presidente Pedreira, no Ingá, que hoje abriga um espantalho em ruína que é o museu. Niterói era uma cidade privilegiada, centro do poder no Estado, vivia muito bem graças ao status de capital que garantia um ótimo orçamento.

A História mostra que a qualidade de vida era ótima. Saúde, educação, cultura, moradia, não faltava nada para ninguém. Se faltasse, o povo ia procurar seus deputados na Assembleia Legislativa do Estado, que funcionava onde hoje é a Câmara Municipal, na Amaral Peixoto. Niterói era limpa, o povo aguerrido não admitia maus tratos. Tanto que, em 1959, indignado com a ganância dos donos das barcas Rio-Niterói tacou fogo da estação, a famosa Revolta das Barcas.

Mesmo com a repressão, a cidade criava atalhos de liberdade. A faculdade de Direito da UFF era um polo de democracia, e lá, no início dos anos 1970, o diretório acadêmico tentou fazer um show de Milton Nascimento e Chico Buarque. A polícia política cercou o prédio para impedir, houve confusão, Milton e Chico acabaram fugindo numa Kombi conduzida por ilustres niteroienses que lideravam o movimento estudantil por aqui.

Outro perseguido foi o heroico Cine Arte UFF. Foi criado em 1968 por um grupo de cineastas, críticos e amantes do cinema que incluía Nelson Pereira dos Santos, Fabiano Canosa, Luiz Alberto Sanz, Roberto Duarte (o Babau), Cosme Alves Neto e pelo então reitor Manoel Barreto Netto. Realizada no dia 12 de setembro, a sessão de abertura foi a estreia brasileira de “Samson”, do cineasta polonês Andrzej Wajda, parte de uma trilogia sobre o Gueto de Varsóvia. O primeiro filme exibido na sala dava início a uma programação independente e temática, que incluía a realização de seminários, ciclos e debate, com o objetivo de oferecer ao público opções diferentes das exibidas pelo circuito comercial.

A perseguição da ditadura foi tamanha que o cinema parou de exibir filmes libertários, ou, segundo os meganhas, “subversivos”. Aliás, há uma outra versão garantindo que ele teria sido fechado a força. Essa linha de programação só foi retomada em 1982.

Nas tardes de sábado e domingo, as meninas desfilavam na calçada da Praia de Icaraí e na pista de automóveis os grandes conquistadores da época a bordo de seus Opalas, Pumas, Fuscões, buzinando aqui e ali. À noite, em Icaraí, o Texas, um bar lendário que ficava numa esquina da praia e o Bier Strand, na outra. Claro, a paquera se estendia aos bailes dos clubes Regatas, Central e Pioneiros (Vital Brazil), ao som dos Lobos, Corsários, Trogloditas e dezenas de outras bandas. Muitos casamentos nasceram desses momentos memoráveis.

Todo esse patrimônio afetivo foi sequestrado pela fusão. A partir de 1975, Niterói passou a ser massacrada pela indústria imobiliária que criou os paredões de prédios na Praia de Icaraí, Rua Moreira César e em vários outros bairros. A próxima vítima, tudo indica, é São Francisco.

Icaraí, Ingá, Santa Rosa eram bairros de casas, vilas. Com a conivência do poder público, as casas e vilas foram demolidas e em seu lugar surgiram prédios que chegam a 20 andares e as árvores praticamente desapareceram. São Francisco, que quando veio a fusão era um bucólico areal, está seguindo mesmo caminho de outros bairros; um crescimento sob o signo da desordem. Atualmente, apesar de governada pelo Partido Verde (o prefeito era do PT mas mudou para o PV por causa da Lava Jato) Niterói não sabe o que é projeto ambiental. Nem árvores a prefeitura planta.

A população foi galopando (os espigões atraíram milhares de famílias da Região Metropolitana do Rio), as favelas (que eram mínimas) incharam, do Rio vieram quadrilhas, sequestros, drogas, pela ponte Rio-Niterói, nascida em 4 de março de 1974.

O niteroiense perdeu a sua identidade, a cidade se viu definhar nas mãos de políticos que nada tem a ver com a sua história. Movida pela falta de respeito, falta de talento, falta de dinheiro e cidadania, a politicagem deixou que a Região Oceânica inchasse de qualquer maneira, sem o mínimo de planejamento.

Quando era capital do Estado, Niterói tinha tudo. Hoje, é o que está aí. Nada que lembre, minimamente, generosidade, cumplicidade, afeto. Niterói tornou-se apenas mais um ponto no mapa da periferia do Rio e seus dramas.

Haja saudade.

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Luiz Antonio Mello
Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.
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4 thoughts on “Niterói e os tempos de capital fluminense

  1. Qual a dificuldade (fora a preguiça e a má vontade) de transformarmos a cidade em um pequeno estado independente (aos moldes de Mônaco, San Marino e Singapura) e cuidarmos da nossa própria vida, dando uma “banana” para a politicagem nefanda do resto dessa porcaria chamada brasil (com letra minúscula mesmo)?

  2. É muito triste de se ver a transformação dessa bucólica Cidade. LAM, somos do tempo em que as pessoas colocavam as cadeiras na porta de casa e ficavam conversando com seus vizinhos. Hoje, mal se falam, quando falam. Aquela Niterói dos carnavais de rua (A. Peixoto, Conceição, Nóbrega, Largo do Barradas, Barreto), que animavam as “famílias”. O Jornal “O Flumunense” era o grande veículo de comunicação da cidade. Incrível, Papai Noel descia de helicóptero no Caio Martins! Malandros e moradores dos morros do entorno e os filhos dos mais favorecidos da Zona Sul eram amigos. Jogávamos pelada, todos os dias, na praia.
    Os Jogos Escolares movimentavam multidões de jovens e paixões por suas escolas.
    Na época da fusão eu fazia parte da equipe de professores que trabalhavam no Caio Martins. Era atividade o ano inteiro, de domingo à domingo. Crianças, jovens e adultos. Sabe o que a fusão fez? Acabou com tudo. Desculpe se o texto é longo. Mas é triste ver essa transformação. Um abraço.

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