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Coluna do LAM

“Niterói Antigo” e uma média com pão na chapa

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“Na calçada da praia de Icaraí o carneirinho puxava a charrete levando os pequenos banhistas para passear. Muito bucólico. Vê-se um corrimão já destruído.” // Foto e texto de Carlos Ruas

Prólogo – a pandemia sequestrou o futuro, mantido em cativeiro em algum terreno baldio, à espera da libertadora vacina.

Há dois meses não sento na padaria, peço uma média com pão na chapa e navego na página “Niterói Antigo”, no Facebook, que nessa quarentena anda muito movimentada.

Sempre achei que Niterói fosse fêmea, Niterói antiga, mas o etimólogo que nos habita não está querendo papo. Se Niterói for macho escrevi errado a vida inteira e, a essas alturas, não dá mais para corrigir. Clique aqui para acessar a página do Niterói Antigo.

Há fotos, algumas raras, dos anos 1970, 60, 50, a escadaria não tem limite. É uma verdadeira viagem, especialmente os lugares que nós não temos noção que existiram.

Para os saudosistas “seniors” as fotos são verdadeiras picanhas maturadas de carne angus, devoradas devagar, olhos lacrimosos. Se bem que, aqui entre nós, quem não está sentido saudade de Niterói, ou de alguéns, ou de si mesmo nesse isolamento imposto?

Quem precisa sair de casa a noite encontra uma cidade desolada, cheia de perguntas sem respostas no meio dessa pandemia. Além do risco de vida, o ser humano é confrontado pela falta de perspectivas existenciais, profissionais porque a pandemia sequestrou o futuro, mantido em cativeiro em algum terreno baldio a espera da libertadora vacina.

Niterói Antigo. Pesquei na gaveta uma história que pode espantar esse mofo atordoado que ronda a cidade. Um encontro que tive com um conhecido que é saudosista, mas não é chato.

Naquele momento ele andava com muita saudade do que chamou de “velha e boa” barca Rio-Niterói “mais romântica, varrida por uma brisa marinha, alguns boêmios, a presença do profeta Gentileza, blá blá blá blá.”

Eu ia dizer que a única coisa boa da barca era a banca de um camelô especializado em relógios falsificados, que ficava num canto lá na Praça 15. Orgulhoso, o camelô dizia “não são paraguaios, a fábrica fica na subida para Petrópolis”.

Não comentei por educação e para não prolongar a conversa, mas não tenho saudade nenhuma da barca Rio-Niterói, de hoje, de ontem, dos anos 1970 (quando atravessava a Baía de Guanabara diariamente) que era suja, quente, lenta. A travessia levava meia hora e elas pareciam bonitinhas e “vintage” só para os turistas ou por quem não era obrigado a usar.

Em algum lugar do passado, havia um marinheiro que era grosso, estúpido, amargo, mal humorado, boçal, mas eficiente.  A partir de meia noite quando o sono engolia muitos passageiros (sem falar dos bêbados), o marinheiro punk batia com o jornal nos encostos das cadeiras de madeira e gritava “chegou, cambada! Quem não levantar volta para o Rio”.

Um conhecido que adorava andar a pé pelo Rio (por isso ganhou o apelido de Gandhi) voltava de um forró no Méier as 2 e meia da madrugada, de sexta para sábado. Eu retornava da semifinal de um festival de música na Tijuca, onde fui jurado.

Na estação da Praça 15, aguardando a barca das três horas, Gandhi falou comigo, eu respondi “rapá, há quanto tempo, e tal”, mas ambos, ele e eu, estávamos baleados de sono. Suspeito que Gandhi estava levemente biritado, mas não pude confirmar. As barcas de três, três e meia, quatro da manhã eram chamadas de “balsa dos desesperados”, o que fazia sentido. Propus a Gandhi que sentássemos perto um do outro.

Chumbados de sono combinamos que ele me acordasse quando chegasse a estação de Niterói. Ele foi franco: “Também estou morto de sono e assim que sentar na barca vou apagar”. Fechamos que cada um dormiria 15 minutos, começando por mim. Ele topou.

Quando a barca deu o terceiro apito, anunciando a partida, encostei as pernas na cadeira da frente, cruzei os braços, olhei em volta (muitos bêbados), me aninhei e apaguei. Tudo muito rápido. Só que Gandhi também dormiu e o marinheiro punk, aquele que acordava todo mundo batendo com o jornal, não estava trabalhando.

Acordei com a embarcação encostando na estação, dando trancos que eram tradicionais. Olhei para o lado, Gandhi roncava e babava. Acordei o meu conhecido, saímos da barca e notamos logo que…tínhamos voltado para o Rio.

O marinheiro punk bem que poderia ter trabalhado naquela madrugada, pensei enquanto saía na Praça 15 em direção a uma carrocinha de milho verde que iria estraçalhar antes de embarcar de novo tentando voltar para Niterói.

– Parece “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, comentei com Gandhi que sequer respondeu.

Provavelmente não sabia do que se tratava, mas quer saber?. E ele tinha razão.  Tínhamos que voltar para Niterói, uma obsessão que tomou conta também dos personagens do filme de Buñuel, pessoas que se veem presas na sala de jantar de uma mansão após uma refeição formal. Não havia nada físico que os impedisse de sair, porém algo os fez reféns de portas e grades imaginárias.

Cheguei em casa já amanhecendo, tomei um banho, bebi um café e fui para a cama. Liguei o rádio baixinho, sintonizado na Eldo Pop FM onde a banda alemã Nektar tocava “A Tab in the Ocean”. Com certeza não conseguiria dormir. Quem gosta de música boa e de cama, não dorme com uma dessas. Ou então é blefe. Não gosta nem de música, nem de cama, mas isso é outro assunto, para outra hora. Foi o que pensei, desligando o rádio.

Luiz Antonio Mello

Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.

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