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A Niterói que não existe mais

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Como se sabe o prefeito vai tomar posse de novo amanhã, domingo. Chegou em segundo lugar nas eleições. Perdeu para votos brancos, nulos e eleitores ausentes, mas levou. Grande fatia da população de Niterói decidiu colocar uma procuração em branco nas mãos dele, que, naturalmente, vê na sua reeleição uma aprovação por tudo o que fez. Certo e errado. E por tudo o que não fez também.

Essa semana encontrei com meu irmão Fernando César, o primo Cornélio e o amigo Névio Caparica para um papo regado a muitas gargalhadas. Névio lembrou, emocionado, do prefácio que escrevi para o livro do muito saudoso Marquinhos Heizer sobre as bandas de rock dos anos 60 e 70 (eram dezenas) em Niterói. Um livro documento que infelizmente esgotou e não ganhou uma necessária segunda edição.

Pedi ao Névio que escaneasse o prefácio pois quero republicá-lo aqui. Enquanto isso, surge em minhas lembranças a Niterói da virada dos 1960 para os 70, da minha adolescência, fase que marcava os últimos dias de paz, já que com a fusão dos estados da Guanabara e Rio e Janeiro, tudo foi para o ralo.

Niterói era muito gostosa. Cheia de casas e muitas árvores, a cidade era pelo menos três graus menos fresca do que no verão de hoje. Na foto mais do que simbólica a implosão do trampolim na Praia de Icaraí, no final dos 60, prenúncio do que estava por vir. A especulação imobiliária ainda não havia abatido Icaraí, Ingá e Santa Rosa e golpes de bate estacas. Nas ruas, jogávamos taco (uma versão tupiniquim mambembe e muito melhor do que o basebol) e tocávamos em nossas bandas. Quase todo mundo tinha uma.

Além das bandas, a caça implacável e sempre frustrada as mulheres libertárias que perambulavam pelo Campo de São Bento nas noites de domingo. Nossas namoradas eram, em tese, virgens e viviam sob a ditadura da família. Nós as deixávamos em casa as 10 de noite e mergulhávamos no obscuro trajeto dos desejos à cata de uma alma caridosa nas trilhas do Campo.

Assoviávamos, soltávamos frases não românticas, implorávamos beijos e amassos mas quase nada (ou nada mesmo) conseguíamos. As vezes, um tapa na cara ou, na sorte, beijar peitinhos na beira do lado, onde existia uma espécie de Rock in Rio erótico. Muitos niteroienses (bota muitos nisso) conheceu a essência do universo feminino nas moitas e coretos do Campo de São Bento.

Todo mundo se conhecia nas ruas de Icaraí, Santa Rosa, ingá, São Domingos porque as ruas eram o nosso habitat. Colégio, cafifa (pipa) na praia de Icaraí, ondas de peito na Itapuca (nunca surfei em pé por preguiça de aprender) bandas de rock em garagens, caçadas no Campo de São Bento, essa agenda lotada não nos deixava com tempo para ficar dentro de casa. Humana, solidária, generosa, Niterói tomava conta de nós. Até a polícia era simpática.

Na adolescência, descobrimos o automóvel como biga de caçada e sedução das mulheres. Os mais ousados, sem carteira, pegavam “emprestado” o carro do pai e saiam por aí, em bandos, tentando contato com o amor “bandido”. Todos tinham no automóvel, meio de transporte, cabana de galanteios e cama para o sexo vadio, louco e livre nos recantos escuros da cidade, onde hoje ninguém pisa com medo de ser assassinado. O pior é que corre esse risco mesmo.

São Francisco era um bucólico matagal, cheio de pântanos onde muitos iam caçar rã e, com os carros dos pais enfiados nas “savanas” fazer sexo com as libertárias, que alguns importavam de São Gonçalo. De vez em quando a polícia parava, os policiais acendiam lanternas, gritavam “olha isso aí! Voltem pra casa!”, iam embora e ficava por isso mesmo.

Nada se comparava à Rua da Amargura, que fisicamente ainda existe e fica quase em frente ao MAC, uma ladeira onde hoje os flanelinhas estacionam os carros. A partir das 10 da noite, a rua da Amargura lotava de carros, todo mundo nu na escuridão tendo a lua como abajur, portas abertas, rádios sintonizados na Mundial, Tamoio ou Eldo Pop.

Alguns esticavam esteiras de praia e cangas no asfalto e ficavam por ali, transando, ouvindo música, olhando as estrelas que eram muito mais brilhantes e até conversando uns com os outros. Se rolava permuta? Claro que rolava. Na saída para casa, uma parada no mirante (onde hoje é o MAC) para comer cachorro quente nos vários trailers que ficavam abertos até as seis da manhã.

O sonho começou a acabar quando a ponte estuprou Niterói em março de 1974 e em 1975 o governo federal casou, a força, a Guanabara com o Estado do Rio. Separados eram ricos e prósperos. Casados a força, faliram. Niterói deixou de ser a capital, começou a conhecer a miséria política, social e administrativa e a especulação imobiliária que entrou de sola em Icaraí levantando os paredões que hoje são as ruas Moreira César e Praia de Icaraí.

A cidade passou a ser regida pelo medo. Hoje, ninguém conhece ninguém nas ruas frígidas e impessoais. Sitiados em condomínios, amigos para se encontrarem tem que marcar com antecedência. Acabou a intimidade, o humor, a leveza. As pessoas se escondem, se evitam, levantam barreiras como as películas escuras dos vidros do carros. As quadrilhas do Rio vieram para cá nos últimos 10 anos, fugindo das UPPs cariocas. A rua da Amargura é hoje um acesso proibido pelos mandantes do crime. Parar lá a noite é um quase suicídio. O areal de São Francisco foi tomado por casas, prédios e bandidos e corre o boiato que em breve a especulação imobiliária vai fuzilar o que resta de bom lá também.

Cordato, servil, o novo niteroiense vai pagar calado um aumento 1% ao mês no IPTU do ano que vem. Vai aceitar que a cidade está maravilhosa, o trânsito fluindo plenamente graças a seu exemplo de mobilidade, que o plantio em massa de árvores é exemplar, que o sistema público de saúde é magistral, que a educação pública é de primeiro mundo, que impera a felicidade, segurança pública, que a Região Oceânica virou uma riviera francesa. Enfim, a maioria dos niteroienses acreditou na propaganda (caríssima) da prefeitura que afirmou que a cidade é melhor do que Sydney, na Austrália e, também por isso, deu ao prefeito mais quatro anos de comando.

Feliz 2017, 2018, 2019, 2020…

 

Luiz Antonio Mello

Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.

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