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Campo de São Bento, de pombas e de preás

Escrito por Luiz Antonio Mello às 21:57 do dia 15 de julho de 2016
Sobre: Oh! Nazareh
15jul

campo são bentoOs niteroienses mais exagerados chamam de “Central Park”, outros de “nosso Jardim Botânico”, e por aí vai. Os verdadeiros niteroienses sempre foram e são muito exagerados e alguns até se orgulham de ser chamados de provincianos.

Bom, o único defeito do Campo de São Bento, a meu ver, é ser pequeno demais. Merecia ser oito vezes maior. Com o inchaço de Niterói, virou um pequeno quintal e, aos domingos, é praticamente impossível transitar por lá devido a quantidade de pessoas, barraquinhas e afins. Lá estudei parte do primário, no Colégio Joaquim Távora, onde passava oitenta por cento das aulas olhando pela janela.

Árvores, pássaros, sol, de um ângulo que dava para ver a calcinha da professora quando ela se sentava. Que mulata! Que mulata era aquela professora. Não foram poucas as mestras que me chamaram atenção (por contemplar passarinhos e não as coxas delas), mas o que fazer se eu tinha me tornado um selvagem quando vivi de três aos nove anos em Angra dos Reis, onde meu pai serviu como oficial de Marinha no Colégio Naval?

O Campo entrou em minha vida quando minha família veio de Angra para cá e, depois de uma rápida passagem pelo Saco de São Francisco, passamos a morar na rua Álvares de Azevedo, em Icaraí. Eu ia para o colégio de manhã e depois das aulas ficava vagando pelo Campo mesmo, observando passarinhos, deitado nos bancos sem camisa olhando para o céu, voltando em seguida para casa. O Campo de São Bento foi meu cúmplice. Em suas árvores, sempre empoleirado lá no alto, conseguia me manter fora do raio de visão da Kombi branca do então Juizado de Menores que passava o dia caçando crianças uniformizadas que supostamente estavam matando aulas o que, sinceramente, não era o meu caso.

Era tempo de Beatles, Rolling Stones e para mim e meu irmão, Fernando Cesar, também The Troggs, The Who. A Alvares de Azevedo era uma rua animada. Ali aprendi com “Bambam” a fazer cabeças de nego (bombas juninas não ingênuas e não lúdicas) que íamos testar no Campo de São Bento. Bombas poderosas, capazes de lançar uma lata de leite em pó a mais de 15 metros de altura. “Bambam” e parte da turma usavam o salão de cabeleireiros da mãe na calada da noite para aperfeiçoar as fórmulas, sempre regadas a muita pólvora granulada quer comprávamos numa loja clandestina em Alcântara, São Gonçalo.

E tome bombas no Campo de São Bento. Inventamos, inclusive, uma espécie de granada acionada pelo choque de bolas de gude contra a parede. Tome bombas e correria porque a vizinhança imediatamente chamava a polícia e ela, a temida Kombi branca. Por causa das explosões alguns pombos morriam e nós, cinicamente em nome de sei lá o que, fritávamos e comíamos usando fogareiro Jacaré. Claro, a comilança era no campo mesmo.

O tempo foi passando, mudei de colégio mas não de quintal. Aos 13 anos mais ou menos, com amigos que não vou citar por razões óbvias, passamos a ter outro, crucial e eterno interesse: mulher. Íamos em pequenos grupos para o Campo de São Bento à noite suplicar por uma mísera encoxada nas adoráveis e saudosas domésticas que habitavam o lugar.

As novas gerações tem muita dificuldade de entender que nós não tínhamos liberdade tem para der beijo na mão de nossas namoradas perto de pais e mães, o que dirá beijo na boca, brincar entre as coxinhas. Por isso, partíamos para o mercado paralelo que, por sinal, era jogo muito duro. “Sai pra lá garnizé, branco azedo” era o mínimo que ouvíamos, mas não desistíamos.

Até que uma certa Nazareth, caridosa, que apreciava galetos de nossa idade, me prometeu que mostraria a sua “preá” em troca de um saco de pipocas. Problema, porque parte de nossa turma não podia mais frequentar as imediações do Cinema São Bento por ter sido acusada, injustamente, de ter promovido um quebra-quebra durante a exibição do filme “Os Reis do Iê Iê Iê” (“Hard Days Night”), dos Beatles. Não, não fomos nós, mas todo mundo nos acusava. E os pipoqueiros ficavam perto do cinema, é claro.

Ainda assim, arrisquei. Ver uma “preá” pela primeira vez na vida, real, ao vivo, depois de anos e mais anos de especulação e miragens proporcionadas pelas revistinhas de Carlos Zéfiro, que também líamos em grupo no Campo de São Bento como se estivéssemos num jogral, era uma consagração.

Consegui a pipoca e Nazareth ficou se deliciando atrás do coreto, na época transformado em viveiro de pombos e rolas (rolinha grande, OK?), que assávamos. Meu coração estava disparado, a boca seca, mãos suando frio, pernas bambas.

Nazareth era fã doente do cantor Paulo Sérgio que veio a morrer mais tarde (1980) de AVC. Gravei uma fitinha K7 com sucessos do cantor que consegui achar numa loja bastante popular no centro de Niterói e levei o som para o nosso ninho de amor. Quando Paulo Sérgio começou, Nazareth chorou compulsivamente e caiu de joelhos em frente ao gravador. Achei que tinha feito uma bobagem em desviar a concentração dela de nossos supostos afazeres sexuais. Por isso, saquei do bolso um outro K7 com uma gravação antiga de Demétrius, que eu adorava, mandando “O Ritmo da Chuva”. Nazareth parou de chorar e retomamos a função. Te devo essa, Demétrius!

Afinal, depois daquele saco de pipocas eu iria contemplar uma “preá” pessoalmente. E foi o que aconteceu. Nazareth amassou o saco (de pipocas) quando acabou de comer e disparou a senha mágica: “vem meu periquito”. Ao som de “Ritmo da Chuva”, levantou a saia. Quase desmaiei quando vi aquele espetáculo. Nazareth não usava underware, era uma índia selvagem. Eu tremia. Nazareth sussurrava “treme mais periquitinho, treme”, e eu tremia, urrava e parti pra dentro como um protótipo Ferrari nas 24 horas de Le Mans, pilotado por Steve Mcqueen (eu sei, sim, que no filme ele pilotou um Porsche, mas o delírio é meu).

O Campo fechava as 10 da noite. Não sei quanto tempo eu, Nazareth, a “preá”  Paulo Sérgio e Demétrius ficamos ali atrás do coreto. Nazareth também acariciou o que chamava de “trombinha” e eu senti o primeiro clímax a dois de minha vida. Antes de ir embora, peguei um prego no bolso e marquei a data numa árvore. Nazareth pediu sigilo, que guardo até hoje. Pediu também drops, linha, agulha, um pente, um gel para cabelos, duas pilhas para rádio, enfim, uma lista de presentinhos que minha santa madrinha financiou numa boa, sem perguntar para que e, principalmente, para quem.

Foi quando passei a defender o Campo de São Bento por uma razão muito simples: eu me apaixonei por Nazareth, por sua simplicidade, liberdade, sua pele lisa, branca como porcelana chinesa, por seu desprendimento, falta de limites, coragem. Briguei com Bambam. Eu dizia “bomba aqui, não”, ele não entendia e eu jamais explicava que não poderia correr o risco de ser expulso daquele lugar.

Eu já arranhava um violão e nos fins de semana íamos todos os amigos com suas namoradas “sérias” de mãos dadas para sentarmos a beira do lago que, por sinal, estava com a água podre. Eu tocava, outros tocavam (violão, que fique bem claro) e depois deixávamos as meninas em casa. A noite, safari de domésticas. Uma vez contei cinco amigos embolados com suas respectivas amásias na beira do lago. Um, de pé, encostado num coqueiro, numa posição conhecida como “garça” (um pé no chão e o outro para trás, joelho em V, encostado no tronco do coqueiro) tremeu e acabou desabando dentro do lago. “Seu imbecil!”, gritava a amásia, que era faxineira na casa de um outro que também estava ali.

Icaraí era dominada por turmas. Turma da Mem de Sá, turma da Pereira da Silva, turma da Joaquim Távora e quando os conflitos se acirravam nós ficávamos ilhados em nossa rua. Não queríamos saber de briga. Nosso negócio era pegar onda de peito de manhã na Itapuca, tocar e ouvir rock a tarde e caçar nossas deusas a noite no Campo de São Bento. Ah, sim, estudávamos também. Sabíamos que estava havendo um grave conflito de turmas perto da Otávio Carneiro mas, ainda assim, fomos a um baile sábado a noite na Domingues de Sá, rompendo a “zona proibida” pela turma de lá. Deu problema.

Uns caras bem mais velhos nos pegaram, levaram para o Campo de São Bento e, ali perto do parquinho deram 50 “caniçadas” nas costas de cada um. “Caniçada” era golpe com caniços de pesca. Doía muito. Em seguida, como de hábito, escolheram três e “crucificaram”, ou seja, amarraram em postes de iluminação. Acusação: um de nós teria dado em cima da irmã caçula de um deles.

Bambam estava entre os crucificados e quem viveu esse tempo, essas turmas, esse Campo de São Bento lembra bem porque saiu até em jornal. Na semana seguinte Bambam jogou uma mega cabeça de nego na casa de um dos sujeitos que o crucificaram. Explodiu na varanda, estilhaçou vidros, os pais do sujeito passaram mal, foi um horror. Ninguém viu. Lembro que até a polícia política (Dops) andou investigando um “suposto ato terrorista” e somente hoje posso dizer o que aconteceu de fato com a famosa “Bomba do Campo”. Por causa disso, o Campo de São Bento passou semanas sendo rastreado pela polícia e as nossas damas sumiram. Foram pelo menos três meses de “Campo proibido”.

Não éramos mais virgens graças ao apetite voraz das “preás”. Do subgrupo que perambulava pelo Campo a noite movido por péssimas (?) intenções, todos estavam magérrimos. Bambam? Sumiu. Fui encontrá-lo nos anos 1990 na Prainha, em Itacoatiara. É medico no sul do país. Mesmo assim, quando ia saindo comentou “aqueles tempos no Campo de São Bento são inesquecíveis”, e deu um sorriso. Tempos em que comecei a achar que era poeta.

Foi no Campo de São Bento que escrevi minha primeira e última poesia chamada “Ana”, que tirou primeiro lugar num concurso no Abel. Lembro daquela noite como se fosse ontem à tarde. O grande jornalista e querido mestre Carlos Ruas ao microfone anunciou que “Ana” tinha sido a campeã. Aproveitei que o Campo me inspirava e sempre que podia levava minha pequena máquina de escrever para lá e soltava meus devaneios. E vieram os jornais, rádios, tudo no galope do tempo que voou e voa.

Os meus amigos sumiram, outros vieram e o Campo de São Bento permanece. Para escrever esse texto decidi dar um pulo até lá para ver como andam as coisas e, é claro, ver se a inscrição em homenagem a Nazareth (aquela que escrevi com prego numa árvore) ainda estava lá. Infelizmente, a árvore sumiu. O Campo estava cheio de gente, muita criança, feiras, mas a essência continua a mesma. Entre pombos e preás.

 

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Luiz Antonio Mello
Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.
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