Quando vou ao novo Cine Arte UFF, uma das melhores salas do país (programação + conforto + recursos técnicos), é impossível não lembrar de aventuras e doces desventuras a bordo do cinema lá pelos anos 1970. O Arte UFF faz parte da memória afetiva de muitos niteroienses, em especial dos apreciadores dos filmes cabeça, deliciosos tsunamis intelectuais que muitos de nós cultuávamos e ainda cultuamos. No final do artigo, publico um resumo da história oficial da sala.
Eu costumava ir, pelo menos, uma vez por semana e não perdia a sessão de meia noite, as sextas-feiras. Desde novo virei militante da Nouvelle Vague, revolução que atirou na telona alguns heróis como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Claude Chabrol, Agnès Varda, Jacques Rivette, e Eric Rohmer e diretores de outros confins da Europa e, claro, do Brasi. Em especial, os guerrilheiros do Cinema Novo: Cacá Diegues, Glauber Rocha, Joaquim Pedro e Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos,Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Ruy Guerra, Olney São paulo, Paulo César Saraceni.
Foi numa Retrospectiva do sueco Ingmar Bergman , anos 1970, verão, que o ar condicionado pifou. E permaneceu pifado por meses. O debate depois do filme foi proibido pela polícia política e alegando calor insuportável um grupo de adoráveis rebeldes resolveu tirar a camisa meio que em sinal de protesto pela censura. Depois, mais provocador, o grupo tirou as calças e ficou de cueca. Fiquei na minha, fulminado mais uma vez pela timidez. As luzes do cinema foram acesas e todos esperávamos que a polícia invadisse a sala para prender os “comunistas por atentado ao pudor”. Nada disso. Uma voz miúda, lá de trás, implorava “gente, por favor vistam a roupa…eu posso perder o meu emprego”. Era o lanterninha. Claro que todo mundo se vestiu. Mas no dia seguinte, no cartaz do festival, alguém riscou o nome ”O Sétimo Selo”, clássico de Bergman e com caneta pilot escreveu “Quinto” no lugar do “Sétimo”. Virou “O Quinto Selo” É que o projetor com defeito volta e meia parava e os fotogramas queimavam na tela, debaixo de vaias. Embaixo, o gozador escreveu: “Quinto porque pelo menos dois selos pegaram fogo”.
O bando das galinhas não frequentava o Arte UFF, mas deu o ar de sua graça numa sessão da meia noite. O bando era formado por notórios arruaceiros de Icaraí que costumavam jogar uma galinha viva para o alto durante filmes dramáticos, como por exemplo “Love Story”, especialmente nos cinemas Icaraí e São Bento (ambos extintos). Fora o Arte UFF, todos os cinemas da zona sul de Niterói acabaram. Numa exibição de Dersu Uzala, do japonês Akira Kurosawa , uma sub-facção do bando jogou uma galinha para o alto que, desesperada, deu um curto voo sobre a plateia cacarejando. Plateia essa que ignorou solenemente a presença do galináceo e não tirou os olhos da tela. O arremessador e mais dois cúmplices, saíram do cinema gritando “bando de bacacas, mal humorados…”
Durante uma fase, comprar a entrada era uma opção. A porta de saída teve um problema e ficou destrancada por um bom tempo. Muitos frequentadores combinavam “hoje vamos pagar para não prejudicar o cinema” e pagavam. Claro, pagavam meia porque todo mundo ali era estudante. E foi pela porta de saída que o “caso Glória” teve início. Um sujeito havia levado um “contrabando” que conheceu na barca para uma sessão da meia noite. Todo mundo assistindo o filme, pés descalços pra cima, fumando um cigarro atrás do outro (o cinema parecia Londres sob o fog) quando começaram a ouvir “Ah, Glória…facilita aí…”; “Pô, Glória…é só um pouquinho”; e tempos depois o grito: “O quêêêê!!!!! Eu, Maria da Grória segurar o seu piru? Nunca!!!”. O cinema veio abaixo, a luz acendeu, o sujeito saiu engatinhando entre as fileiras para não ser reconhecido e Glória, impávido colosso, cabeça erguida, desfilou no corredor central e deixou o Art Uff pela porta de entrada.
Uma vez acharam que Glauber Rocha estava lá, assistindo a “O Homem que Amava as Mulheres”, de François Truffaut, para participar de um suposto debate após a exibição. Tudo cascata. Disseram outra vez que Zezé Motta, tesão nacional, estava lá, na estreia de Xica da Silva, do Cacá Diegues. Outra mentira. A mesma informação do gênero “sabem quem está aí?” dava como certa a presença de outro tesão nacional, Odete Lara. Ninguém levou fé, mas era verdade. No final do filme (creio que foi “A Rainha Diaba”, de Antonio Carlos Fontoura), uma discreta aglomeração de fãs cercou a diva. Discreta porque naquela época intelectual não podia tietar e nem ir a praia. Um bêbado famoso em Niterói foi mais fundo: “Odete…que coisa é você, Odete…você não quer ir dar uma volta de aerobarco comigo?”. Aerobarco eram os primatas dos catamarãs. Odete docemente declinou.
O Arte UFF cometeu o equívoco de programar “The Song Remains The Same” (no Brasil, “Rock é Rock Mesmo”), filme do Led Zeppelin. Como já havia acontecido o Rio, Brasília e Belo Horizonmte, tomada de excitação generalizada ao som da super banda inglesa, a plateia começou a quebrar o cinema, que foi salvo por frequentadores radicais (entre eles, eu) que reagiram distribuindo chutes e tapas. Os frequentadores radicais apanharam muito (“intelectual não sabe brigar”), mas salvaram o cinema.
Entrou para a história a sessão de estreia de “2001, uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick. O filme, hermético e enigmático por natureza, ganhou contornos surreais no Arte UFF porque o maquinista exibiu o último rolo no lugar do primeiro. Mas o pior é que teve gente debatendo o filme invertido no final, logicamente sem saber que tinha ocorrido a inversão.
Ficaria aqui ao longo de linhas e mais linhas contando histórias maravilhosas deste cinema que hoje é motivo de muito orgulho. Uma sala que respeita a Grande Arte. Da bilheteria a porta de saída.
Viva o Cine Arte UFF!
Um fragmento da história que pesquei no site do Centro de Artes UFF:
“O Cine Arte UFF foi criado em 1968 por um grupo de cineastas, críticos e amantes do cinema que incluía Nelson Pereira dos Santos, Fabiano Canosa, Luiz Alberto Sanz, Roberto Duarte, Cosme Alves Neto e pelo então reitor Manoel Barretto Netto.
Realizada no dia 12 de setembro, a sessão de abertura foi a estreia brasileira de “Samson”, do cineasta polonês Andrzej Wajda, parte de uma trilogia sobre o Gueto de Varsóvia. O primeiro filme exibido na sala dava início a uma programação independente e temática, que incluía a realização de seminários, ciclos e debate, com o objetivo de oferecer ao público opções diferentes das exibidas pelo circuito comercial.
Interrompida em função do endurecimento da ditadura militar, esta linha de programação foi retomada em 1982, quando o professor João Luiz Vieira e alunos do curso de Cinema da UFF tomaram a frente do espaço.”
Com o passar dos anos o cinema sobreviveu a falta de manutenção e ao esculacho imposto pelo seu dono, o governo federal (via UFF) que depois do AI-5 (assinado dois meses depois do nascimento da sala), e ao loindo dos anos 70 acabou se tornando um fodo de resistênciua muda e, também palco de cenas folclóricas.