New here? Register. ×
×

Origem do jornal mais antigo de Niterói

Escrito por Gilson Monteiro às 08:36 do dia 24 de fevereiro de 2019
Sobre: O Fluminense
24fev

Na primeira oficina de O Fluminense, as páginas eram compostas linha a linha com caracteres de chumbo

A gênese do jornal O Fluminense é descrita no artigo a seguir, escrito há onze anos pelo jornalista e historiador Emmanuel de Macedo Soares (1945/2017). Ele contextualiza a história do segundo mais antigo jornal do país em circulação (o primeiro é o Diário de Pernambuco) com um retrato da Niterói do século XIX. O material faz parte do acervo do ex-colaborador da coluna e foi gentilmente cedido para esta publicação por seu filho, o jornalista Marcelo Macedo Soares.

Emmanuel de Macedo Soares

“O Fluminense começou a circular simultaneamente em Niterói e na Corte do Rio de Janeiro a 8 de maio de 1878.

No seu primeiro editorial já traçava as linhas mestras que seriam, em 130 anos, marcos intocáveis de sua conduta: defesa das tradições fluminenses, desenvolvimento comercial, agrícola e industrial; expansão do ensino, abertura de estradas, eram os temas básicos pelos quais se bateria.

O cabeçalho anunciava: O Fluminense, órgão da província do Rio de Janeiro, publica-se por enquanto às quartas, sextas feiras e domingos.

Mais abaixo, dizia: Aceita e publica gratuitamente qualquer artigo de interesse público.

Os dois avisos traduziam uma promessa e um programa. Promessa de vir a ser o diário de todos os fluminenses. Programa de ação efetiva ao lado da opinião pública.

O bem comum seria sua principal preocupação em 130 anos de existência, como provam tantas campanhas por ele desenvolvidas.

E as melhorias tecnológicas e estruturais introduzidas pelo correr dos anos atestam o cumprimento daquela promessa. 

Não foi tarefa fácil, tendo nascido, como nasceu, para fazer oposição ao Partido Liberal, que acabara de ascender ao poder.

Oposição serena, e não sistemática. Apontava e condenava, numa linguagem forte, mas sempre elevada, os erros dos governantes.

Era intolerante quanto às perseguições políticas a quem quer que fosse, ou diante de alguma arbitrariedade, partisse de quem partisse.

Mas também sabia aplaudir os atos que resultavam em benefício coletivo, como aconteceu ainda em dezembro de 1878, quando o tão combatido governo do visconde de Prados revogou uma lei injusta e cruel que impedia o tratamento de alienados e doentes mentais nos hospitais públicos.

Do mesmo modo, depois de oito anos nas trincheiras da oposição, quando o Partido Conservador retornou às posições de mando, não negou críticas aos próprios correligionários, quando entendeu que eles descuidavam dos interesses coletivos.

O Partido acima de tudo, mas o povo e a Nação acima dos partidos. Este seria o princípio capital de O Fluminense, na Monarquia e na República.

Se a opinião era importante, tratando-se de um jornal essencialmente político e partidário, não menos significativa era a área de serviços e informação que completavam, de forma variada, o conteúdo editorial.

Lá estavam os atos oficiais, o noticiário da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa, as notas sociais, os avisos de falecimento, o comentário de algum acontecimento internacional importante, as queixas e reclamações dos leitores, a colaboração de poetas e cronistas, a programação dos clubes e do único teatro que então possuíamos, o Santo Antônio, modestamente instalado num sobradinho da rua São João.

Essa multiplicidade de temas foi o grande segredo da rápida penetração do jornal em todas as camadas sociais, exigindo sucessivos aumentos de tiragem.

Como consequência natural da popularidade vieram os anúncios, espalhando-se cada vez por maior espaço.

Num tempo em que ainda não se conheciam no Brasil as técnicas publicitárias, era por meio desses pequenos anúncios, vendidos a tostão por três linhas, que se vendia de tudo: um espartilho vindo de Paris, um elegante par de botinas de couro da Rússia ou até mesmo uma lata da farinha láctea Nestlé, e isso 57 anos antes da Nestlé resolver se instalar no Brasil.

Ao completar seu segundo aniversário, em maio de 1880, O Fluminense já participava aos leitores que aumentaria seu formato, sem com isso alterar os preços do exemplar avulso ou das assinaturas. E, tendo em vista o constante fenômeno de esgotarem-se muito cedo as folhas, providenciaria também um considerável aumento da tiragem.

No editorial em que anunciava essas primeiras mudanças, reafirmava sua linha de conduta: Cada vez melhoraremos mais a folha, abrindo novos títulos sobre ciências, literatura, variedades, além dos que já temos. Sem abandonar a política, na qual militamos pelas ideias conservadoras, esforçar-nos-emos em continuar advogando a causa do interesse local. Em todos os assuntos presididos pela justiça, o público nos verá do seu lado, como incansável combatente.

Veio a República, quando já crepusculava o ano de 1889.

Qual seria o posicionamento de um jornal nascido para defender o Partido Conservador, que desaparecia também, naquela manhã tumultuada de 15 de novembro em que rolava por terra o trono de Pedro II?

A mesma de nove anos antes, reafirmada no editorial do primeiro réveillon republicano, a 1º de janeiro de 1890: As questões práticas de melhoramento da ordem material e moral preocuparam mais a atenção de seus redatores e as colunas deste periódico do que as lutas inglórias, as polêmicas infrutíferas, filhas da paixão partidária. O programa que tem sido seguido até hoje continuará a ser adotado por esta folha, sustentada unicamente pelo favor do público.

Rola o tempo e O Fluminense se torna diário em 1º de julho de 1892. O editorial em que anuncia a transformação não seria diferente dos demais, como se saísse da mesma pena: É um sacrifício que fazemos para servir ao público de um modo mais completo. Procuraremos, por outra parte, melhorar todas as seções de nossa folha, buscando para isso a colaboração de mais alguns escritores apreciados e aumentando a atividade de nossos repórteres. A publicação de atos do governo merecerá especial atenção e será feita diariamente, pondo assim os leitores ao corrente do que se for dando, e sem demora.

E a 1º de janeiro de 1901, ao espoucar dos foguetes que celebravam o nascimento do século XX, o compromisso solene de 1878 era mais uma vez reafirmado: O progresso do Estado do Rio é o principal de nossos intuitos. A elevação moral e o desenvolvimento material de Niterói, as nossas mais ardentes ambições.

Para entender essas ardentes ambições é preciso retroagir um pouco no tempo.

Quando os primeiros exemplares do jornal foram às ruas, em maio de 1878, Niterói era pouco mais que uma aldeia, em que pese o status de capital da província mais rica do Império, que desfrutava desde 1835.

As ruas do centro eram as únicas que dispunham de calçamento, precário e grosseiro.

O abastecimento d’água se restringia também ao perímetro urbano, mas tão insuficiente que nem mesmo as famílias de baixa renda podiam dispensar as pipas vendidas de casa em casa.

Sistema de esgotos, nem pensar. Era um sonho distante e quase inatingível, que só começaríamos a realizar pelos idos de 1912. Sobre as pedras irregulares das ruas rolavam dia e noite os barris de matérias fecais, que bom humor do brasileiro apelidou de tigres, rumo à ponte de despejos na Ponta da Areia.

As barquinhas de rodas mal haviam despontado na paisagem niteroiense, reduzindo a confortáveis 30 minutos a travessia da Guanabara, mas poluindo céus e terras com a fumaça negra e densa das caldeiras de carvão.

Entre aquis e alis ponteavam os lampiões de gás, que ainda tinham de ser acendidos um a um, pois o encanamento era privilégio das residências particulares.

Bondinhos puxados a burros já rodavam desde 1871, mas apenas nas linhas que iam do Centro ao Barreto, ou do Centro a Icaraí, voltando por Santa Rosa e pelo largo do Marrão.

Quando não chovia, os notívagos podiam se deliciar com os raros espetáculos do Teatro Santo Antônio, no jardim de São João, quase sempre a cargo de grupos amadores. O imponente Santa Teresa, onde brilhara o gênio de João Caetano, apenas começava a se levantar de novo sobre as ruínas do antigo, para se transformar no Teatro Municipal que hoje tanto nos orgulha.

Mais concorridos eram os bailes da elegante Sociedade Recreio São Domingos, ou os recitais que misturavam os noturnos de Chopin e os chorinhos do Calado na Filarmônica Niteroiense, que iria receber com todas as galas em 1880 a visita de Carlos Gomes.

O ensino primário era dado em dezenas de escolinhas de sala única, em classes separadas para meninos e meninas. O secundário só na Escola Normal, para quem desejasse seguir o magistério, ou em estabelecimentos particulares como o Curso Lustral, o Liceu Popular Niteroiense ou o Colégio Briggs, onde estudavam Miguel Couto e Antônio Parreiras.

O comércio do Centro se resumia a açougues, boticas, padarias e sobretudo armazéns que se espremiam ao longo das ruas da Conceição e da Praia, da Visconde do Uruguai e Visconde de Itaboraí, que o povo ainda chamava pelos nomes primitivos de rua d’El Rei e rua da rainha.

Fábricas não mais que meia dúzia, produzindo cigarros, charutos, velas, bebidas, sabões, chapéus de palha ou de sol. Acabara de falir o poderoso complexo industrial que o visconde de Mauá levara 30 anos montando na Ponta da Areia, onde se fabricavam desde navios e canhões até pontes de ferro e moendas de cana.”

 

Sharing is caring

Gilson Monteiro
Iniciou em A Tribuna, dirigiu a sucursal dos Diários Associados no Estado do Rio, atuou no jornal e na rádio Fluminense; e durante 22 anos assinou uma coluna no Globo Niterói. Segue seu trabalho agora na Coluna Niterói de Verdade, contando com a colaboração de um grupo de profissionais de imprensa que amam e defendem a cidade em que vivem.
|

5 thoughts on “Origem do jornal mais antigo de Niterói

Comments are closed.