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Carnaval de Niterói nunca mais vai ser igual aquele que passou

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Damas da corte, baianas, noivas e misses de barba e bigode caiam na folia

Antes de entrar no recesso momesco resolvi botar o bloco na rua e com o som dos tamborins reviver o carnaval de um passado que não volta mais em Niterói. A folia começava na Praça Martim Afonso, onde os pontos de encontro eram na estátua de Arariboia e no relógio da Grand Joias. A turma começava a se fartar em frente, na padaria Pão Quente, e saciava a sede no Hidrovita, que servia o hidrolitol e refrescos de laranja e abacate.

O point mesmo era a Rua da Conceição toda ornamentada. Ali a animação já começava na sexta-feira. Os comerciantes ficavam com meia porta aberta atendendo a distinta clientela de foliões. Encontrava-se de tudo, como na Camisaria Tauil, desde o chapéu Panamá a confete, serpentina e o insubstituível tubo de lança perfume para esguichar o spray aromático no pescoço ou nos braços das pessoas, provocando um frescor gelado. Os mais assanhados colocavam o produto   no lenço e levavam ao nariz para provocar euforia e desinibição. A lança foi proibida pelo presidente Jânio Quadros em 1961.

As outras casas tradicionais da Rua da Conceição procuravam dar um atendimento vip a sua seleta clientela. A Leiteria Brasil servia a insuperável torrada de Petrópolis, a autêntica coalhada e o picadinho com ovo. A Esportiva com seus imbatíveis salgadinhos, a Italiana servindo pizzas ao sugo, a Riviera com seus pratos leves e sua cervejinha gelada formavam o circuito gastronômico do carnaval. Até a Farmácia Ponciano, onde o prestativo português Acácio dava plantão para que ninguém ficasse sem tomar injeção, abria as portas para os súditos de Momo.

Pela estreita Rua da Conceição passava gente vestida de tudo o que se possa imaginar. Vinham de todos os cantos de Niterói com fantasias individuais ou em grupos, ricas, originais, onde predominavam as colombinas e os pierrôs.

A farra também tinha outros pontos de concentração, em dias e horários alternados. Havia o tradicional banho de mar à fantasia do Fluminense de Natação e Regatas, próximo ao Mercado de Peixe São Pedro, clube que ainda existe.

Outros destaques eram as bandas do Central e do Canto do Rio que reuniam bastante gente e animação, envolvendo dois clubes tradicionais e com muitos associados em Niterói.

O Barreto também tinha um carnaval animado reunindo as tribos niteroienses e gonçalenses num autêntico samba no pé na Praça Eneas de Castro, contando com a retaguarda do Clube 5 de Julho. Não posso deixar de falar da força dos bailes nos clubes e suas matinês, inclusive com suas festas pré-carnavalescas, onde se destacava a Noite do Havaí, no Central.

O bloco do Antonio Pedro

Vou contar uma história entre muitas que aconteceram nos períodos de folia na ex-capital fluminense. Estava tudo pronto para a Banda do Central desfilar pela praia de Icaraí quando toca o telefone do clube. Era para avisar ao médico Carlos Augusto Bittencourt Silva, chefe da Emergência do Hospital Antônio Pedro, que havia acontecido uma colisão de veículos, com muitos feridos.

Na Ala do Gugu havia muitos médicos e enfermeiras do hospital. Para não perder tempo, o doutor levou todo mundo fantasiado mesmo. Vestiriam no hospital os jalecos sobre as fantasias azul e branco. Um paciente deitado na maca, ao ver o desfile disse a uma enfermeira que estava delirando. Sentia-se num baile de carnaval.

Gugu, como Carlos Augusto Bittencourt Silva era carinhosamente conhecido, foi professor de Ortopedia da UFF, um dos fundadores do Hospital São Lucas, e criador do projeto Gugu, de ginástica em praça pública para a terceira idade. Era uma das figuras encantadoras de Niterói.

Nesse carnaval, o doutor não desfilou na banda do Central, mas cumpriu seu dever de médico, o que fez uma vida inteira, tendo por isso deixado sua marca e seus bons exemplos para as futuras gerações.

Crianças de índio, homens de mulher

Os pais durante muito tempo achavam uma graça fantasiar os filhos de índios. Não como os das tribos brasileiras, de tangas e quase nus, mas sim como as norte-americanas (como os cherokees), que usavam vestimentas coloridas vistas nos filmes de caubói.

Eu já tinha servido o Exército quando meu amigo-irmão Milton Araújo Franco trouxe uma foto de nossa infância na Vila Pereira Carneiro. Estávamos fantasiados com cocares na cabeça. Indaguei a dona Betinha por quê, se  eu era pernambucano, não seria mais adequado vestir uma roupa de cangaceiro. Minha mãe logo justificou: não gostaria de ver o filho com sabres de Lampião na cintura, mesmo que fossem de plástico. Fiquei com o apito de Arariboia.

Nesses três dias de carnaval a vergonha desaparecia e era comum os homens se fantasiarem de mulher. Saiam nos blocos com vestidos, maiôs, camisolas, perucas, sapatos de salto alto, rouge no rosto e batons de cores fortes. Pegavam a “fantasia” no guarda-roupa e na penteadeira das mães, irmãs, tias e amigas.

O famoso antropólogo brasileiro, o niteroiense Roberto da Matta trata isso como o ritual da inversão.  É o ritual da licença, onde os opostos da sociedade rotineiros se invertem. De modo geral, Da Matta avaliou que quando os homens brasileiros se vestem de mulheres, isso revela “o poder que que as mulheres têm na vida rotineira brasileira, que não é, obviamente, discutido e reconhecido nem mesmo por elas”.

De resto, só me falta cantar aquela marchinha:

Este ano não vai ser,
Igual aquele que passou,
Eu não brinquei,
Você também não brincou,
Aquela fantasia,
Que eu comprei ficou guardada,
E a sua também, ficou pendurada…

Bom carnaval a todos. Quem tiver mais alguma lembrança dos carnavais de antão, deixa aqui nos comentários.

As crianças eram fantasiadas de índio pelas mães

.

Gilson Monteiro

Iniciou em A Tribuna, dirigiu a sucursal dos Diários Associados no Estado do Rio, atuou no jornal e na rádio Fluminense; e durante 22 anos assinou uma coluna no Globo Niterói. Segue seu trabalho agora na Coluna Niterói de Verdade, contando com a colaboração de um grupo de profissionais de imprensa que amam e defendem a cidade em que vivem.

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