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‘Só a terceira guerra mundial pode salvar Niterói’

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J.A. Xavier foi um grande amigo. Um mestre. Ele esteve em Niterói no ano de 1976 e foi nos dar uma força no jornal LIG, do saudoso Fernando Marcondes Ferraz. Eu era editor-chefe, apesar da vasta cabeleira, a magreza de 67 quilos. Trabalhava de manhã como repórter de polícia e cidade na Super Rádio Tupi AM, emissora densamente popular que me apresentou a todas as favelas do Rio, seus humores, suas belezas, suas mazelas.

Num dia de fechamento (o “pescoção” começava às 3 da tarde e acabava às 5 da manhã) o Xavier, que Niterói conhecia como Jajá, apareceu por lá. Era mais de 30 anos mais velho em idade, mas com certeza mais jovem do que todos nós. Inteligentíssimo, trabalhou muitos anos no Estadão, foi ao Vietnã, mas as cenas que presenciou no trágico incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo (fevereiro de 1974), foram demais para ele. Xavier contava que “aquele drama me enlouqueceu. Literalmente”. Foi aposentado aos 47 anos por problemas emocionais.

Tinha passado a infância e parte da juventude em Niterói, onde ficou amigo do Fernando. Indicado para três prêmios Esso de jornalismo me gerou uma grande insegurança. “Esse cara vai engolir o meu lugar”, eu pensava. E naquela mesma tarde quente pra caramba num prédio da avenida Amaral Peixoto, Xavier me chamou num canto e disse “L.A., estou aqui de passagem e de onda. Gosto desse jornal, só quero escrever”. E fomos jantar num restaurante da região onde os boatos diziam que o coelho ali servido era, na verdade, gato. Irônico, Xavier pediu ao garçom “um coelho a caçarola, de preferência com um gato preto gordinho que vi aqui perto mais cedo”.

Apaixonado pela cidade, estava furioso com a especulação imobiliária que destruía bairros como Icaraí e Ingá. Pediu para fazer uma matéria a respeito, assinando como Carlo de Carlo. Topei. O título: “Só a terceira guerra mundial pode salvar Niterói”. Seu texto genial (o melhor que conheci e conheço) formulava uma teoria que fazia muito sentido. Ele dizia que só bombardeando a cidade e começando tudo de novo Niterói estaria salva.

Mas havia muitos problemas. Muitos. A começar pelos anunciantes do jornal, 80% ligados as imobiliárias. Se o Fernando soubesse o que o Xavier estava tramando (coma minha cumplicidade) botaria os dois para fora. Foi quando sucumbi aos argumentos do mestre que dizia “a imprensa é maior do que qualquer empreguinho de merda. Já levei um pé na bunda de um jornal quando estava em Londres e por lá vaguei como um pau de enchente. Amigos me deram comida, bebida, teto, mulheres lindas me dera amor. Pra que mais?” Topei. Mais: daria uma chamada na capa. E assim foi.

Lembro que ele abria a matéria dizendo que “imaginar um mundo sem Machado de Assis já foi um horror no passado, mas como imaginar Niterói no ano 2000 diante da tragédia que é a cobacabanização de Icaraí, Ingá e, quem sabe um dia, São Francisco e praias da Região Oceânica?”. Além de tudo, Xavier era visionário. Fizemos uma capa com várias fotos da cidade, inclusive a do lendário Cinema São Bento que ficava na rua Domingues de Sã, ao lado do Campo.

Quando as 5 horas da manhã assinei as pranchas (material que vai para a gráfica) autorizando a ida para o Rio onde foi impresso, sabia o que estava fazendo. Ao longo da noite, conversando coma nossa pequena e guerrilheira equipe e bebericando vinho (na verdade, uma garrafa inteira), Xavier dizia “viemos ao mundo para fazer história ou, no mínimo, comer essa bela senhora”. Trancamos as duas salas onde o jornal funcionava e fomos caminhando até a Leiteria Brasil para tomar a canja sagrada da madrugada. Curioso, penso agora: Xavier não existe mais, nem o LIG, nem o Cine São Bento, nem a Leiteria Brasil e a terceira guerra não rolou.

Bebendo Chateau Duvalier ele propôs uma série de entrevistas imaginárias no jornal, começando por Machado de Assis. Claro que topei. E fomos conversando (eu apreendendo) até as 7 da manhã quando ele entrou num táxi e eu numa barca rumo a Rádio Tupi, para variar sem dormir. Xavier costumava dizer que “a melhor marca de automóvel é o táxi”.

Quando o LIG banhou Niterói no sábado começou o meu horror. Fernando Marcondes Ferraz me telefonou cedo perguntado “que sandice era aquela?” e tentei explicar que fazia sentido, blá, blá, blá. Claro que tive certeza de que meus dias como editor do maior semanário de Niterói naquela época tinham chegado ao fim. Só que, nas ruas, praias, prédios, livrarias, em todos os lugares as pessoas aplaudiam a matéria de capa porque não queriam que a cidade chegasse ao ponto que tinha chegado, um paliteiro de prédios de 15, 18, 20 andares.

Segunda-feira fui falar como Fernando, depois de meu trabalho na Rádio Tupi. Na sala dele estava o Xavier. Entrei e disse “Fernando, vim entregar minha cabeça mas não me arrependi”. Fernando, com o olhar mais manso, respondeu “o Xavier disse que foi ele quem te encheu o saco para publicar essa matéria, que você não tem nada com isso”. Rebati. “Como não tenho nada com isso? Publiquei porque achei, acho e sempre vou achar que, de fato, só a terceira guerra mundial pode salvar Niterói.”

Ao contrário do que Fernando esperava, nenhum anunciante parou de publicar suas peças no LIG, por razões óbvias. Vendiam muitos imóveis (anunciar no LIG era venda certa) e precisavam limpar a sua imagem já que o jornal recebeu milhares de cartas de apoio. E o Xavier ria, ria, ria e de fato fez uma estupenda entrevista fictícia com Machado de Assis e mais outros artigos espetaculares como “Nunca mais 50”, onde defendia que essa deveria ser a idade máxima do ser humano já que, segundo ele, “a partir daí ele começa a ser ofendido e humilhado por todo mundo, a começar pelos planos de saúde e pelo governo”. Pensava num romance chamado “Sozinho não dá”, mas de uma hora para outra, meses depois de pousar na cidade, foi viver numa cidade de Minas. Passei perto de lá esta semana. Trocamos cartas, algumas, ele dizia que “o bom dessa cidade mineira é o tédio, que me convida a entornar até cair rsrsrsrs”. Lá o meu amigo morreu.

Só soube anos depois.

Luiz Antonio Mello

Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.

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