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O que eu vivi dos 450 anos de Niterói

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A antiga e tranquila Praça Martim Afonso, com Arariboia em seu pedestal acompanhando o vai e vem das barcas

Quando a terra de Arariboia completa 450 anos nesta quarta-feira (22), quero relembrar meus tempos vividos em Niterói, desde quando peguei o Ita do Norte no Recife para desembarcar aos 3 anos de idade na bucólica Vila Pereira Carneiro. Morei numa das 160 casas que o conde que dá nome à vila antes havia construído para moradia dos trabalhadores da Companhia Comércio e Navegação. Numa das primeiras crises da indústria naval, o estaleiro acabou fechando, mas as casas foram alugadas.

O conde Ernesto Pereira Carneiro, dono e diretor do Jornal do Brasil, por coincidência meu conterrâneo, casou-se com a moradora de Icaraí Maurina Dunche de Abranches. Ela virou condessa e morou por bom tempo no palacete do alto do morro da Ponta D’Areia. Já viúva, assumiu a direção do JB, um dos mais importantes veículos da imprensa brasileira.

Naquele tranquilo recanto perto do Centro, existia de tudo um pouco. Mas o mais importante era a solidariedade e a convivência familiar. Não tinha, por exemplo, uma praia como a de Icaraí com seu trampolim. Havia a praia da Vitamina, assim chamada pelos banhistas porque o mar trazia para a areia frutas e legumes jogados por navios ancorados na baía de Guanabara.

Fora o incômodo do banhista, após um bom mergulho, encostar a cabeça numa cenoura, batata, maçã ou banana, a praia da Vitamina era tranquila, sua frequência agradável, além de ter balizas para a concorrida pelada, rede para voleibol, peteca e outras práticas esportivas. Em frente, ficava o Fluminense de Natação e Regatas, clube que resiste aos 107 anos, com pouquíssimos sócios.

Não posso deixar de falar do Grupo Escolar Raul Vidal, onde todo mundo do bairro estudava. Era dirigido pela incansável Jonia Gonçalves da Fonte, sempre preocupada em dar uma educação de qualidade e boa alimentação aos alunos. No pátio do colégio ficava também a Escola Fluminense de Belas Artes, por onde passaram respeitados e famosos pintores.

Bem próximo dali, estava o Mercado de Peixe instalado em palafitas que adentravam ao mar, defronte da rua Marquês de Caxias. Algumas barracas oferecendo frutas, legumes e hortaliças que vinham do interior ficavam em frente, na calçada da Rua Visconde do Rio Branco.

Sem lojas de grife na época, uma opção prática e de bom preço eram as camisarias dos libaneses da Rua Marechal Deodoro. Vendiam uma variedade de roupas masculinas e sapatos, que davam para o gasto da moda simples. A Mesbla, na rua Visconde do Rio Branco, era um grande magazine. Vendia de tudo um pouco, eletrodomésticos, roupa de cama e até automóvel.

Não posso esquecer do Hospital Santa Cruz, fundado pela colônia portuguesa. Por décadas abrigou a nata de médicos competentes e dedicados de todas as especialidades salvando vidas, sendo pioneiro de vários tratamentos e cirurgias. Em sua maternidade também nasceram muitas crianças.

A diversão era o cinema, tanto que havia cinco salas só no Centro: o Rio Branco, Éden, Odeon, Imperial e o Central, esse exigia paletó.

Nos dias de carnaval famílias se reuniam à noite na Rua da Conceição. Levavam suas cadeiras para assistir os pequenos blocos e desfiles de fantasias, no meio de foliões lançando serpentinas e soltando lança perfumes. Era uma festa tranquila e animada.

Estamos falando de um Centro da Cidade, relembrando locais e pessoas que faziam a vida e a alegria da ex-capital fluminense e que desapareceram aos poucos, mas foram de importância significativa para o desenvolvimento e história nesses quatro centenários e meio de Niterói.

Os antigos devem lembrar das cadeiras de engraxate da Rua Coronel Gomes Machado, dos três irmãos Accetta; e as da Rua da Conceição, dos irmãos gêmeos Vairo. Eram cinco excepcionais figuras italianas que, depois de um papo agradável, deixavam os sapatos brilhando nos pés dos fregueses.

A cidade tinha o Canto do Rio disputando o Campeonato Carioca de Futebol, com sua grande torcida organizada e mando de campo no Estádio Caio Martins. O azul e branco tinha hino composto por Lamartine Babo e formou gerações de craques, como o tricampeão mundial Gerson.

A turma fazia sua fezinha nas lojas A Favorita e no Irmãos Cupello, distribuidores dos bilhetes da Loterj, e também em um dos inúmeros pontos do jogo do bicho com os apontadores correndo com a chegada da polícia.

No Salão Elegante, na Rua José Clemente, os homens se cuidavam aparando o bigode, cortando o cabelo e tingindo para esconder o grisalho, além de cortar as unhas e colocar esmalte incolor. Saiam nos trinques.

Um ritual para muita gente era o cafezinho em pé e o jogo de porrinha antes de pegar as barcas para o Rio, nos balcões dos Cafés Vista Alegre, Santa Cruz e Sul América. Naquele trecho ficava a Hidrovita, que servia o hidrolitol, uma água efervescente gelada que diziam fazer bem ao estômago e curar ressacas. Ao lado, a Pão Quente, que soltava fornadas de bisnagas e pães franceses a todo instante, para uma fila de fregueses.

Demorei, mas cheguei na Leiteria Brasil, com movimento o dia inteiro, desde o café da manhã. Ali tudo era bem-feito e gostoso, como a sua imbatível coalhada, os sanduíches quentes e frios, os cremes e mingaus, as sopas, a banana split, os filés variados, além de ter um balcão que vendia de tudo um pouco com qualidade para o lanche de casa.

À noite, a Leiteria Brasil era ponto de encontro da política. De vez em quando as discussões acaloradas iam acabar de madrugada nos bancos da praça em frente às barcas. Tinha a Confeitaria Sportiva, cujas prateleiras de vidro mostravam salgadinhos sempre fresquinhos e insuperáveis.

Como antes não havia essa profusão de drogarias, encontrava-se um atendimento prestativo na Farmácia Ponciano, onde seu Acácio sempre dava um jeito e se precisasse aplicava a injeção. Na rua tinha também a Italiana, que habituou muita gente a gostar de pizzas com um molho sugo por cima.

Chegamos finalmente ao restaurante Monteiro, que oferecia um almoço saboroso, farto e variado em mesas de muito bate papo e alegria. Tinha uma frequência eclética, governadores, o mundo político, empresarial, jurídico, profissionais liberais, famílias, enfim, era frequentado por todo mundo.

Pouco adiante, o popular Bar Municipal que abria cedo para oferecer um cafezinho em seu balcão, mas ficava até tarde servindo tira-gostos diferenciados como testículos de boi e carne de rã, além do chope gelado.

Na outra rua, a José Clemente, para quem quisesse fazer um lanche rápido, existia a Pastelaria Imbuí, com seus pastéis variados e caldo de cana, além de mostrar na parede uma barca da canteira que ficava girando o tempo todo e era atração para adultos e crianças.

Na minha memória afetiva do Centro ainda estão resistindo bravamente a loja Princesa, com variedade de tecidos há 100 anos, e Camisaria Tauil, 74 anos, com vestuário masculino tradicional, na Rua da Conceição. Tem a Confeitaria Alemã, 72 anos, com suas tortinhas de morango e risoles de camarões deliciosos, na Avenida Amaral Peixoto; a Livraria Ideal, o Sebo do Mônaco, 93 anos, com obras literárias raras, que passou do pai Silvestre para o filho Carlos, na rua Visconde de Itaboraí,  além, claro, da estátua do fundador Arariboia, que permanece intacta na Praça Martim Afonso, assistindo a tudo de braços cruzados, inclusive ao sumiço do grande relógio Rolex, da Grand Joias, que ficava num pedestal e orientava a hora de quem ia pegar as barcas. O Rolex desapareceu misteriosamente numa dessas reformas da praça feitas pela Prefeitura.

Só me resta agradecer a Niterói que me acolheu com tanta receptividade e carinho, inclusive me concedendo o título de Cidadão Niteroiense e, o mais significativo, a infinidade de amigos conquistados nas diversas atividades e posições, humildes ou importantes. Resta-me, enfim, pedir as bençãos de Deus para continuar com o mesmo propósito e entusiasmo jornalístico de servir e informar a tribo de Arariboia, da qual faço parte.

Gilson Monteiro

Iniciou em A Tribuna, dirigiu a sucursal dos Diários Associados no Estado do Rio, atuou no jornal e na rádio Fluminense; e durante 22 anos assinou uma coluna no Globo Niterói. Segue seu trabalho agora na Coluna Niterói de Verdade, contando com a colaboração de um grupo de profissionais de imprensa que amam e defendem a cidade em que vivem.

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