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Coluna do LAM

O náufrago de Itaipu

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Foi na praia de Itaipu, que voltarei a frequentar em breve, quem sabe rever amigos como o Gilson e a Emy. Foi lá que encontrei um amigo que no ano 2000 viveu uma aventura (para alguns, desventura) numa ilha próxima daqui. Ele prefere não citar, mas não é conhecida. Muito experiente, ele navegava há dias em sua baleeira quando bateu numas pedras. O barco começou a fazer água e ele avistou, muito perto, essa ilha num dos inúmeros recortes geológicos da região.

Pôs o salva vidas, pegou facas, cantil, dois canivetes suíços, alguma comida e mergulhou no mar, nadando para a ilha. Até hoje ele afirma que o rádio do barco estava com defeito e por isso não conseguiu chamar um socorro.

Chegou a ilha deserta (pequena, bem pequena) e percebeu que ela ficava num “dente”, uma falha geológica que a tornava praticamente invisível.  Atingiu a pequena faixa de areia, se embrenhou na vegetação nativa e armou uma barraca, com folhas de bananeira e bambu. Ele diz que curiosamente não estava assustado.

O jantar daquele dia estava garantido. Havia comida mas ele já tinha percebido que em caso de necessidade poderia recorrer aos mexilhões, coco, pitanga, maracujá. 

Como era inverno a noite caiu rápido. Ele havia planejado escrever, com letras garrafais, SOS na areia da minúscula praia, mas achou melhor deixar para o dia seguinte. Não iria resolver. Além do mais, segundo a sua carta náutica e o GPS, naquela região não passava aviões e muito menos navios, justamente por causa dos recifes. Ele alega que não sabia onde estava, mas é impossível. Sabia, sim.

Ele estranhou. Em vez de sentir a angústia dos náufragos, a sensação era de alívio. Estranho alívio. Foi quando lembrou que seu casamento estava pastoso, no fim, que seus filhos ultimamente estavam dedicados a egolatria radical, que o seu trabalho como biólogo marinho numa universidade estava parado por falta de verbas, que a sua família estava espalhada pelo mundo, que a sua saúde…ah, a sua saúde estava ótima.

Não foi difícil para ele constatar que, a princípio, não havia interesse algum em retornar para a civilização. “A princípio”, pensava para si mesmo. A bem da verdade, ele avaliou, seu único vínculo afetivo honesto, com todos os retornos que os vínculos afetivos proporcionam, era a baleeira. Que afundou.

Nos primeiros dias ele deu umas voltas pela ilha. Comeu muita pitanga e até maracujá. Ainda não havia escrito SOS na areia porque… não estava a fim de SOS algum. Foi quando começou a pensar na possibilidade de se tornar um náufrago eterno. Não só naquela ilha, mas em outras ali por perto também. Nunca havia sentido tanta liberdade, tanto desprendimento e a certeza de que não fazia falta a ninguém. O único problema era seu irmão mais velho, conhecido como Taco, campeão mundial de iatismo e capaz de localizá-lo.

Poderia fazer a barba com os canivetes suíços mas deixou crescer. Poderia usar os jeans que trouxera do barco, mas optou por ficar nu, poderia arranjar talheres para comer mas desejou comer com a mão. Caprichoso, fez um cardápio com várias opções de mexilhão com coco, pitanga e maracujá. Passou a correr uma hora todos os dias e, após 25 dias, percebeu que nenhum barco passou perto da ilha. Avião? Nem pensar. Lembrou que havia bebido (dia sim, o outro também) e “acidentalmente” desligado o GPS do barco dias antes do naufrágio.

Quarenta e oito dias depois ele foi acordado por uma pequena multidão. O irmão Taco (bingo!) o havia localizado. Chegou a ilha para socorrê-lo, com várias pessoas, entre elas sua mulher. O náufrago não conseguiu esconder o sorriso amarelo, o mal estar, a desagradável sensação de ter a sua paz de espírito liquidada em poucos minutos. Vestiu uma bermuda esfarrapada.

“Você está ótimo”, disse Taco, notando a pele bronzeada, o corpo sarado, a leveza do irmão. A mulher nada disse porque, segundo o náufrago, ainda não havia encontrado algum motivo para esculachá-lo, um hobbie dela.

Contrariado, embarcou com o irmão de volta a civilização. Falava pouco, estava muito calmo. Taco comentou “você nem parece aquele sujeito ansioso, tenso de meses atrás”. O náufrago disse “é, não pareço”. 

Dias depois chegou a Niterói. Havia uma festa surpresa no clube. Ele fingiu que gostou. Pediu divórcio, pediu demissão da universidade e emancipou os filhos. No dia que o encontrei na rua, ele falava em voltar a navegar. Fiz uma pergunta objetiva: “voltar a navegar ou a naufragar?”.

Tudo é possível. Ele disse.

Luiz Antonio Mello

Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.

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