Pôs o salva vidas, pegou facas, cantil, dois canivetes suíços, alguma comida e mergulhou no mar, nadando para a ilha. Até hoje ele afirma que o rádio do barco estava com defeito e por isso não conseguiu chamar um socorro.
Chegou a ilha deserta (pequena, bem pequena) e percebeu que ela ficava num “dente”, uma falha geológica que a tornava praticamente invisível. Atingiu a pequena faixa de areia, se embrenhou na vegetação nativa e armou uma barraca, com folhas de bananeira e bambu. Ele diz que curiosamente não estava assustado.
O jantar daquele dia estava garantido. Havia comida mas ele já tinha percebido que em caso de necessidade poderia recorrer aos mexilhões, coco, pitanga, maracujá.
Como era inverno a noite caiu rápido. Ele havia planejado escrever, com letras garrafais, SOS na areia da minúscula praia, mas achou melhor deixar para o dia seguinte. Não iria resolver. Além do mais, segundo a sua carta náutica e o GPS, naquela região não passava aviões e muito menos navios, justamente por causa dos recifes. Ele alega que não sabia onde estava, mas é impossível. Sabia, sim.
Ele estranhou. Em vez de sentir a angústia dos náufragos, a sensação era de alívio. Estranho alívio. Foi quando lembrou que seu casamento estava pastoso, no fim, que seus filhos ultimamente estavam dedicados a egolatria radical, que o seu trabalho como biólogo marinho numa universidade estava parado por falta de verbas, que a sua família estava espalhada pelo mundo, que a sua saúde…ah, a sua saúde estava ótima.
Não foi difícil para ele constatar que, a princípio, não havia interesse algum em retornar para a civilização. “A princípio”, pensava para si mesmo. A bem da verdade, ele avaliou, seu único vínculo afetivo honesto, com todos os retornos que os vínculos afetivos proporcionam, era a baleeira. Que afundou.
Nos primeiros dias ele deu umas voltas pela ilha. Comeu muita pitanga e até maracujá. Ainda não havia escrito SOS na areia porque… não estava a fim de SOS algum. Foi quando começou a pensar na possibilidade de se tornar um náufrago eterno. Não só naquela ilha, mas em outras ali por perto também. Nunca havia sentido tanta liberdade, tanto desprendimento e a certeza de que não fazia falta a ninguém. O único problema era seu irmão mais velho, conhecido como Taco, campeão mundial de iatismo e capaz de localizá-lo.
Poderia fazer a barba com os canivetes suíços mas deixou crescer. Poderia usar os jeans que trouxera do barco, mas optou por ficar nu, poderia arranjar talheres para comer mas desejou comer com a mão. Caprichoso, fez um cardápio com várias opções de mexilhão com coco, pitanga e maracujá. Passou a correr uma hora todos os dias e, após 25 dias, percebeu que nenhum barco passou perto da ilha. Avião? Nem pensar. Lembrou que havia bebido (dia sim, o outro também) e “acidentalmente” desligado o GPS do barco dias antes do naufrágio.
Quarenta e oito dias depois ele foi acordado por uma pequena multidão. O irmão Taco (bingo!) o havia localizado. Chegou a ilha para socorrê-lo, com várias pessoas, entre elas sua mulher. O náufrago não conseguiu esconder o sorriso amarelo, o mal estar, a desagradável sensação de ter a sua paz de espírito liquidada em poucos minutos. Vestiu uma bermuda esfarrapada.
“Você está ótimo”, disse Taco, notando a pele bronzeada, o corpo sarado, a leveza do irmão. A mulher nada disse porque, segundo o náufrago, ainda não havia encontrado algum motivo para esculachá-lo, um hobbie dela.
Contrariado, embarcou com o irmão de volta a civilização. Falava pouco, estava muito calmo. Taco comentou “você nem parece aquele sujeito ansioso, tenso de meses atrás”. O náufrago disse “é, não pareço”.
Dias depois chegou a Niterói. Havia uma festa surpresa no clube. Ele fingiu que gostou. Pediu divórcio, pediu demissão da universidade e emancipou os filhos. No dia que o encontrei na rua, ele falava em voltar a navegar. Fiz uma pergunta objetiva: “voltar a navegar ou a naufragar?”.
Tudo é possível. Ele disse.
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