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Charles Bukowski da Rua da Conceição

Escrito por Luiz Antonio Mello às 09:00 do dia 24 de fevereiro de 2018
Sobre: Saudade do futuro
24fev

Saudade. Sinto, não nego. Passei boa parte da semana trabalhando com som. Muito som. Som de alta tecnologia, gigabytes, mixagem, edição, remixagem. Som, som, som.

As músicas que ouço atualmente chamam a saudade do futuro. Muita. Mas cronologicamente pertencem ao passado segundo os incautos.

Passado e presente.  Empolgado, aflito, intenso, tenso, denso como o moleque de 16 anos, magérrimo, cabelos encaracolados até os ombros, cheguei a Radio Federal AM. Som. Rua da Conceição, Centro de Niterói, verão, alto verão. Rua da Conceição 99, edifício Brasília. Rádio de rock, dirigida por Carlos Sigelmann e produzida por Marcos Kilzer e Jorge Davidson, que me ensinaram muita coisa de rádio.

O edifício Brasília ainda está lá, apesar da rua da Conceição ter virado uma deformação urbana, como boa parte de Niterói. Semana passada passei em frente, olhei para cima, mas não lembrei de nada. Lembrei sim. Do dia em que caminhava rápido e arfando pela rua quando na altura da Galeria Gold Star (o edifício Brasília fica ao lado) avistei uma rodinha. Populares contemplavam o chão.

Deitado, babando, um homem de meia idade estava tendo um ataque epilético. Não parei para olhar, segui reto. Parei, voltei. Para olhar. Me juntei ao povaréu. Olhei. Vi um sujeito enfiar uma caneta Bic na boca do homem que estrebuchava na calçada de pedrinhas portuguesas, cheia de buracos. Caneta para não enrolar a língua.

A ambulância não chegava. Alguém chamou. Mas não chegava.

Falta de ar, palpitação. Achei que ia cair ao lado do sujeito. Crise de ansiedade. Eu sabia. Sabia? Não, não sabia. Levaram o homem para algum lugar. Lugar nenhum? A rodinha se desfez. Eu já tinha fumado três cigarros. Não por causa do homem. Não por causa da rádio. Por causa da ansiedade.

Estava meia hora adiantado e não queria chegar muito antes. A única vez que cheguei atrasado foi quando nasci. A fórceps, numa sexta de carnaval.

Banca de jornal. Respirei fundo. A palpitação passou. Uma mulher me cutucou e disse oi. Era Dagmar. Uma amiga prostituta que trabalhava naquela região de oito as oito. Oito da noite as oito da manhã.

Oi Dag, respondi achando que ia passar mal de novo. Você por aqui a essa hora?, ela quis saber. Expliquei que ia ver um trabalho ali perto. Sorriso de mulher, olhos negros, cabelos negros, pele negra, que mulher era Dagmar, que eu só tinha visto à luz da noite. No sol, jamais. Estou indo ao dentista, magrinho, ela comentou. Eu disse que quando pintasse grana eu ia baixar lá no Rink para voltar com ela ao Hotel Ipiranga, espelunca popular onde tomei (como boa parte de minha geração) muito meio banho na pia.

Cheguei no corredor da rádio 15 minutos antes do horário marcado. Ficava no décimo andar do edifício Brasília. No décimo primeiro jazia uma repartição do que hoje se chama INSS, na época INPS. Me mandaram entrar. Um homem muito bondoso, simpático, gente boa, com ar de tio. Manoelino, discotecário. Foi ele quem me levou a sala de produção da Rádio Federal. E de lá só saí dois anos depois para quase casar com Thin Lizzy, até então mulher da minha vida, que chegou atropelando, jogando pra fora da estrada Dagmás, Nazarés e várias outras.

Thin Lizzy me apresentou ao sexo com amor, mas costumava dizer que eu era um devasso. Não gostava quando ela falava aquilo. Mas continuava devasso, eu acho. Ouvi essa “ofensa” (?) algumas vezes, muitos anos depois. Acabamos nos perdendo na autoestrada da vida.

Lia Charles Bukowski compulsivamente para me anistiar das culpas. Lia diariamente, antes de dormir. Lia tudo. Cada linha, um perdão. Cada parágrafo, uma não sentença. Cada livro, o nirvana.

 “O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.” (Charles Bukowski).

Lia tudo dele. Precisava da louca clemência do alemão que vivia na Califórnia.

“há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?” (Charles Bukowski)

Vinte e sete dias trancado num estúdio da Rádio Federal ouvindo rock alemão, italiano, grego, inglês, americano, brasileiro. Disseram que eu precisava entender o que estava acontecendo no mundo. Verdade. Eu entendia, mas não conhecia. Melhor do que conhecer e não entender, mas os caras não queriam papo.

No dia em que saí da tal “imersão” (cinco horas por dia), fiz meu primeiro programa. Eu já escrevia algumas coisas em jornais de bairro e citei o Bukowski. Citação leve. Na outra semana ele decretou que era um fracasso existencial na célebre entrevista ao The New York Times que a minha futura casa, o Jornal do Brasil, reproduziu. Demiti Bukowski. Adotei Anais Nin, Henry Miller, Carlos Zéfiro e fiquei na dúvida entre Sartre e Camus. Machado de Assis desempatou.

Dagmar passou na rádio. Queria saber por que eu havia sumido. Você pegou doença comigo?, ela perguntou. Eu disse que não. Você casou?, indagou. Eu disse que não. Finalmente mandou “você se apaixonou?”, eu disse que sim. Ela disse tudo bem, desejou sorte e pegou o elevador. Que coisa, eu pensei. Talvez tivesse sido melhor ter mentido. Mas eu não faria isso com Thin Lizzy.

Hoje revisito essa trilha sonora nublada, quente, úmida, permeada pela rua da Conceição, através de arquivos digitais que um dia já foram álbuns de vinil.

Percorro os labirintos do tempo, do espaço, os poros de Dagmás, Nazarés, Thin Lyzzies, meus suores frios, calafrios, livros, calçada largada, o cara rolando, a ambulância que não veio, o amor verdadeiro, o beijo no orvalho, flores do campo, poesia na barca, e tome música, música, música. 

Música.

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Luiz Antonio Mello
Jornalista, radialista e escritor, fundador da rádio Fluminense FM (A Maldita). Trabalhou na Rádio e no Jornal do Brasil, no Pasquim, Movimento, Estadão e O Fluminense, além das rádios Manchete e Band News. É consultor e produtor da Rádio Cult FM. Profissional eclético e autor de vários livros sobre a história do rádio e do rock and roll.
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